segunda-feira, 26 de março de 2018

Festinha na Creche

O que acontece na festinha da creche fica na festinha da creche.


   - Papai, a Aline tá na casa dela? – pergunta o guri de pouco mais de dois anos.

   - Não, ela foi pra escolinha também. Outra escolinha.

      Benedito está ao volante, irritado com a alta velocidade de alguns motoristas que vem em sentido contrário. A estrada vicinal por onde trafegam é de terra e cascalho, e é estreita. Nos primeiros dias, cumprimentavam-se uns aos outros. Com o tempo, os bons modos foram esquecidos e ninguém se constrange mais em ser deseducado, mesmo que se encontrem na creche com ar de aquele não sou eu. Mas Benedito não quer transparecer preocupação enquanto dialoga com Inácio, ocupante da cadeirinha instalada no banco de trás; prefere desfrutar o bom-humor do filho.

   - Papai, põe o menino brasileiro no rádio?... – pede ele.
   
   - Não dá, meu lindo. Já acabou. Saímos atrasados... Você não deveria ter ficado fazendo tanto dengo com mamãe na cama, né? O hino brasileiro toca às oito horas; só amanhã, agora...      
                                                  
    Inácio aperta os olhos contra o sol.

   - Cadê a cortininha pro sol não passar em mim, papai?...

   – Tá lavando, mas o sol já vai embora: olhe ali, logo adiante a estradinha fica sombreada, vê? – aponta Benedito, enquanto Inácio o ignora e acha na mão, esquecida, uma banda de pão-francês torrado com pouca manteiga. Dá uma mordiscada.

    Costumava comer toda e pedir mais, no que agora lhe parecia mais divertido despertar inveja nos coleguinhas com sua iguaria babada. O tiro, no entanto, saiu pela culatra depois que umas menininhas gulosas puxaram a camisa do ‘Tio Dito’ dizendo “também quelo”. Ele então se viu na obrigação de levar uma banda de reserva, embrulhada no bolso, e dar às crianças como se desse aos pombos da praça, aos pedacinhos, transformando a partilha num grande bafafá na porta da sala. Com cada vez mais pessoinhas curiosas e pidonas à volta do Tio Dito, este passou a levar um pão inteiro, cooptando até os mais tímidos e birrentos da classe. A professora não gosta desse fuzuê porque todos se dispersam, estragando seu planejamento. Ela espera que Benedito se toque; ele se toca, mas não se importa. Haroldo, ajudante da professora, também não, e se diverte vendo Benedito entreter os pirralhos. Haroldo ainda é estagiário.

   - Papai, põe fon-fon no rádio?

    Benedito alcança um cd no porta-luvas; a música inicial é In the Mood.

   – É o Glen Mila, papai? – pergunta Inácio, já com a resposta no olhar. O pai olha pelo retrovisor o sorriso maroto. Inácio sabe que quando acerta, o pai o felicita dizendo “êta, garoto batuta!” que ele adora ouvir.

   - Sim, é o Glenn Miller; Glenn Miller e sua orquestra.

   - ...e minha orquestra, né, papai?

   - É, sua orquestra... – diz o pai, levando o braço direito para trás do banco e massageando carinhosamente os pés do filho.

    Um motorista de óculos escuros ignora o espaço cedido gentilmente e passa rápido, sem agradecer. Benedito se incomoda em estar incomodado numa manhã tão bonita e fresca, princípio de Outono. Olha novamente e vê o filho vidrado no som: Inácio balança a cabeça acompanhando a investida dos saxofones, completamente envolvido pelo naipe de metais orquestrado por Glenn. Na segunda metade da música, acompanha os trombones às gargalhadas, fazendo fon-fon em resposta à provocação aguda dos trompetes. Quando entra Moonlight Serenade baixando a bola, o pequeno aceita a mudança de rumo e relaxa.

    Benedito passa em primeira marcha por um trecho mais acidentado. Inácio, agora pensativo, tenta se segurar com o sacolejo.

   - Eu gosto da Aline, papai. Vou guardar o pãozinho pra dar pra ela – decide o garoto, e olha ao redor procurando o guardanapo que jogou por ali.

   - Ela é legal, mas não precisa guardar seu pão; a Aline já comeu o dela – diz Benedito. – Aliás, ela te convidou para brincar lá hoje à tarde; vamos?

   - Não...

   - Ué?... Não?!.. Por quê?

   - Não, papai, porque eu vou trazer a Aline pra minha escolinha! – diz, satisfeitíssimo com o plano.

  - Pra sua escolinha?... Certo, mas tem que ser num dia de celebração – sugere o pai, deixando um ponto de interrogação na testa da criança. – Tem de ser numa comemoração... Num dia de festinha! – explicou.

   - É mesmo... Boa idéia, né, papai?... – responde o menino, refreando a felicidade momentaneamente infinita. Benedito prossegue:

   - Não pode ser em dia de aula. Hoje, por exemplo, você tem aula de música; você gosta da aula de música, né?

   - Não.

   - Não!?... Mas você adorava!... E da aula de circo, você gosta?

   - Não.

   - Ué, de que aula você gosta?

   Inácio procura o pai no retrovisor e emenda:

  - Aula de festinha, papai!
 



Nota: essa crônica foi concluída em 25 de março, em homenagem à memória da minha avó materna, D. Moema e à minha irmã Amanda, aniversariantes do dia; às duas, minha lembrança, meu carinho e meu amor.