Zé Bigorna, flagrado num carpado lateral. |
O choro do bebê invade meus
sonhos e dá leveza à minha cabeça, antes afundada no travesseiro. Desperto. O
silêncio momentâneo engana – me reacomodo -, e o neném novamente reclama. São 2:43 a.m.
Ao meu lado, a mãe dorme profundamente.
Desde o desmame noturno, quando ela iniciou a tentativa de recuperação das
horas de sono que perdera nos quatorze meses anteriores (sem contar o período da
gestação), não escuta mais os choros da madrugada. O cérebro dela sabe que eu
tô na parada e desliga. Me sento, dou uma suspirada conformada, procuro pelas
meias ao pé da cama e saio tateando a parede, até alcançar a maçaneta da porta.
As meias são fundamentais porque me dão pés de gato para escapar em silêncio.
Entro no quarto e me aproximo do berço; só
então vejo que Zé Bigorna está sentado – mau sinal -, e chorando de sono – bom
sinal. Ao identificar minha voz, interrompe o choramingo para declarar sua
vontade; “mamãe...”, no que emendo “tá dormindo” e, deitando-o sob lamuriosos
protestos, engato uma canção inventada na hora, enquanto vislumbro meu dia
seguinte esvair-se em sonolência e cansaço. Nas letras, incluo sempre seus
colegas de crime (i.e., os marginais da creche), além de muita ação com a bola
(que rola) e com a vovó (porque é oxítona terminada em ó). Pego de surpresa por
tantas referências frescas ao seu cotidiano, ele silencia, vira-se de bruços e,
antes de saber quê ou por quê, adormece. Eu também; em pé.
A tensão para sair, em silêncio, fechar a
porta, em silêncio, dar uma passadinha no banheiro e fazer xixi, em silêncio,
caminhar até quarto sobre o chão de madeira que estala, em silêncio, e me
deitar na cama que geme, sem acordar a mãe, em silêncio – isso é que me desperta, no que por vezes
recoloco a cabeça no travesseiro quando o sono já ficou perdido pela casa.
Tenho de buscar pelo nada absoluto se quiser voltar a dormir. A tática do
travesseiro sobre a orelha costuma funcionar contra eventuais roncos de motor
ao longe, o que indicaria a proximidade do nascer do dia. Sinto calafrios
quando escuto o “baú das cinco”, que chacoalha a madrugada trazendo trabalhadores
do Paranoá para o Plano Piloto.
Quando o bebê acorda outra vez, pode se pensar que não se passaram nem 5 minutos, e em verdade foram quase duas horas. Nem mesmo
havia se estabelecido, o sono é interrompido, ainda raso, dando um nó no pensamento da
gente, misto de ódio e conformismo. Precipito para o quarto de Zé Bigorna.
Parece que ele se espremeu na quina do berço, e isso o acordou. Mamãe me cobra
há meses para transformá-lo em caminha. Ai que sono... Nunca dá tempo. Ajeito o
menino cá embaixo, cubro (sinto amor), passo a mão na barriguinha e tento me
lembrar como era a melodia da canção de há pouco. Não lembro. É fundamental
cantar alguma coisa logo para captar sua atenção, ou o choro fica forte.
Enumero então todos os nomes que me vem à cabeça e, após algumas viradas e remexidas, ele finalmente volta a dormir. Percebo que dessa vez me
esqueci das meias. O piso emborrachado me faz prisioneiro. Ele se mexe ainda mais algumas vezes antes de se
ajeitar num aconchego que parece ser duradouro, ressonando gostosamente. Prendo a respiração. Tiro meu pijama e faço uma trilha até a porta do quarto. Atiro a cueca no chão e pronto; liberdade!
A mãe continua dormindo.