domingo, 9 de abril de 2017

Hora de Dormir

                                                       
E quando apareço, sorrimos juntos...
    É meio-dia. Estou ao volante. Dou seta, reduzo a marcha e sinto o motor reverberar, produzindo um ronco maneiro. O carro está sem escapamento. Entro à direita e desemboco numa estradinha vicinal de terra batida, bem irregular, cheia de pedras. É uma subidinha capciosa. Engato a primeira e vou em frente, curtindo a vinheta de abertura de um programa de rádio, e também o barulhinho gostoso do pneu rolando sobre o cascalho solto.

    A escolinha do Zé Bigorna é hari-bô; fica no meio do mato. Se o motor do meu carro não morresse tanto eu poderia usufruir mais da estradinha. Sobre o banco do passageiro repousam duas fatias quentinhas de pão integral com um pouquinho de manteiga. Estão embrulhadas em duas folhas de papel-toalha. Quando é só uma, o farelo cai e o carro vira um formigueiro.

    A vinheta é muito boa; tem uma levada natalina que nos enche de esperança vazia e passa a sensação de que toda a inépcia da politicagem tupiniquim, no bojo, é coisa pequena que não afetará em nada nossa vida. Suas indefectíveis notas xilofônicas enlevam nosso espírito. Surge ao fundo do patrocinador, e depois se funde com a vinheta nacional, com um leve delay, aumentando a sensação inequívoca do ouvinte de estar em rede. É peculiarmente prazerosa essa sobreposição, como se fossem duas fitas magnéticas emendadas por durex, que em sua imperfeição transmitem a ideia de que, afinal, nem tudo é linear no mundo digital.

    Com menos de um mês levando e buscando Zé Bigorna na “colinha” dele, já perdi o escapamento do automóvel. Deu pra ver pelo retrovisor quando ele caiu e se acomodou às margens da estradinha empoeirada. Passei a andar bem mais devagarzinho, e quando o sujeito, em sentido contrário, passa na tora, me reto, e penso logo na hipocrisia inerente à natureza da gente, contraditória, que matricula um filho numa escola alternativa à neurose social em voga, enquanto replica em nosso mundinho perfeito o pior do modelo vigente – modus horribilis. Mas faço questão de cumprimentar a todos. Os mais velhos agradecem a distinção demonstrando aceitação à boa conduta. Os menos, muitas vezes passam com vidros e óculos escuros – as novas gerações sempre tem uma empáfia genuína quando comparadas às antecedentes.

    Entrementes, o apresentador do nosso programa atinge o limite máximo do reacionarismo suportável, tornando-se um mau carona. Desligo bem a tempo de evitar o comentarista de política - diz-se, à boca miúda, que neguinho anda trocando o chá pelo purgante, nas reuniões da ABL, só para evitar o fleumático membro. Fiquemos apenas com os cascalhinhos e o motor desregulado.

    Chegando à “colinha”, é hora de ir ter com o Bigorna. Antes de mostrar a cara, namoro, como um sujeito apaixonado, aquela linda figura, à distância. Jamais o flagrei em apuros, zangado ou choramingando, e quando apareço, sorrimos juntos. Ele corre ao meu encontro e eu o sufoco com tantos beijos e cheiros; é a coisa mais deliciosa do mundo! De repente ele se lembra de algo e suspende o dengo. Me encara com certa tensão no olhar e me segura pela barba, com as duas mãos, trazendo meu rosto para perto do dele:

    - Pão! Pão! Pão!... – clama.
    - Estão lá no carro, à sua espera, meu lindo... – E ele sorri de mostrar os dentes.

    No trajeto de volta ele pouco fala e muito come. Só não quero que ele adormeça antes de chegarmos. Quando estaciono, está quase de olhos fechados. E se zanga porque ainda troco a fralda, a roupa, lavo pezinhos e mãozinhas, e dou aguinha, antes de levá-lo à rede, embalando seus sonhos enquanto declaro meu amor.