quarta-feira, 3 de maio de 2017

Nossos Líderes e o Grande Acordo Nacional

Líderes mundiais (todos petralhas e mortadelas) dão distinção ao presida: onde está Wally?


Suspeita-se que Nossos Líderes sejam ladrões, e que venham pilhando a Nação desde há tempos, geração após geração. Há indícios que matem por terra, dinheiro e afins, conforme nos ensina a história, mesmo quando contada por eles mesmos.

Como no tempo do Santo Ofício, Nossos Líderes entendem que índio não é exatamente gente, como também não o são os pretos, os homossexuais, os humanistas e as mulheres, mesmo as recatadas, as do lar e as jornalistas de direita, assim como os pobres de qualquer sexo, idade ou cor. Não obstante, são crentes no bom Deus e devotos do nosso senhor Jesus Cristo – nenhum deles é ateu. Apesar da fé cristã, não aprovam a conduta subversiva do franciscano Supremo Pontífice. O papa Pancho, por sua vez, já colocou os nomes de Nossos Líderes na boca do sapo. E, para o caso da macumba do batráquio falhar, reza, dia sim, outro também, para que queimem todos no fogo dos infernos. Sendo representantes de um povo ordeiro e cristão, Nossos Líderes dão o exemplo e comungam diariamente (mas só em período eleitoral), mesmo que, ocasionalmente, sejam pedófilos, cafetões, espancadores de mulher ou estupradores e, frequentemente, madeireiros, latifundiários, escravagistas, contrabandistas ou ruralistas. Afora bispos, pastores, bicheiros e assassinos. Alguns dos quais, escritores e até poetas!

Nossos Líderes admiram caninamente a América e abanam o rabo para qualquer um dos 45 presidentes norte-americanos, à exceção do Barack que, embora não seja comunista, gay, pobre ou mulher, é preto. Nossos Líderes preferem os que se pareçam a John Wayne, e que ajam como tal, aniquilando índios e detratores do sistema, com o charme de quem sempre tem um maubôro à boca.

Nossos Líderes acreditam piamente na auto-regulação do Mercado, mas tacham de jurássicos os que falam em Socialismo – para eles, uma seita de fanáticos formada por maconheiros, estudantes de Ciências Sociais e outros desocupados; todos lobotomizados durante o Ensino Médio por esquerdopatas dogmatizadores. Comunismo, claro, é coisa do Capeta. Defendem com veemência o Estado Mínimo e entendem como dinheiro mal gasto aquele destinado a projetos de cunho social e redistribuição de renda. Se a redistribuição, no entanto, for para salvar bancos privados da bancarrota, aí zelam pelo Estado Máximo.

Além de alvos e anti-pederastas, são comumente bem abastados os Nossos Líderes, pois sem contabilizar quantias não contabilizáveis, sempre contam com a mão amiga do Estado que tanto odeiam, mas que lhes banca cargos públicos, supersalários, aposentadorias especiais e regalias que colecionam ao longo da “árdua labuta política”. E como labutam (principalmente no dos outros)! Há quem diga que fazem política por caridade e amor à República, e que se preciso for, recorrem às garruchas a fim de garantir os interesses nacionais; tese recentemente corroborada pela chacina de agricultores, no feudo de Mato Grosso, ou pela emboscada genocida feita aos índios, nas sesmarias do Maranhão. Nossos líderes entendem que não há forma mais objetiva e funcional de dialogar que com o porrete. O Brasil tem pressa. “Pau neles”, diria o pit bull palestrino.

Apesar do bom momento e dos holofotes que ora desfrutam (?), Nossos Líderes viveram os últimos anos envoltos em amargura e ostracismo por conta das sucessivas derrotas eleitorais. Com mais uma no horizonte, emergiram das profundezas com um plano para salvar o País mediante um Grande Acordo Nacional. O áudio com o audacioso plano vazou, de modo que o Brasil inteiro ficou sabendo do roteiro do golp... plano para nos salvar, com o Supremo, com tudo. Sendo mais engraçado pensar que todos os desdobramentos, desde então, não passaram de mera sucessão de coincidências, o golp... plano para salvar o país dos comunas, tal como sua revelação em cadeia nacional, em nada fizeram corar aquela parcela dos brasileiros que mais entende de surubas tenebrosas e camisas da seleção.

Com tantos sorvetes na testa, Nossos Líderes são motivo de chacota em todo lugar. Por aqui, gozam (leia-se, agonizam) com 9% de aprovação da sociedade que tentam salvar, enquanto lá fora, vivem o limbo geopolítico: são escanteados e isolados nas fotos oficiais, imploram por encontros bilaterais e tem visto de entrada negado nas terras do Tio Sam.

Ainda assim, e imbuídos por motivações de foro íntimo, Nossos Líderes elaboraram um pacote de ações draconianas que mergulhará o Brasil no mais absoluto atraso social. E assim, nesse balanço sem nenhum requebrado, a toque de caixa e com pedidos de urgência que ninguém enxerga e manobras regimentais que todo mundo vê, mas se cala, o golp... plano para salvar a nação tem sido seguido à risca, nos mínimos e mais ardilosos detalhes, com o Supremo, com tudo.

domingo, 9 de abril de 2017

Hora de Dormir

                                                       
E quando apareço, sorrimos juntos...
    É meio-dia. Estou ao volante. Dou seta, reduzo a marcha e sinto o motor reverberar, produzindo um ronco maneiro. O carro está sem escapamento. Entro à direita e desemboco numa estradinha vicinal de terra batida, bem irregular, cheia de pedras. É uma subidinha capciosa. Engato a primeira e vou em frente, curtindo a vinheta de abertura de um programa de rádio, e também o barulhinho gostoso do pneu rolando sobre o cascalho solto.

    A escolinha do Zé Bigorna é hari-bô; fica no meio do mato. Se o motor do meu carro não morresse tanto eu poderia usufruir mais da estradinha. Sobre o banco do passageiro repousam duas fatias quentinhas de pão integral com um pouquinho de manteiga. Estão embrulhadas em duas folhas de papel-toalha. Quando é só uma, o farelo cai e o carro vira um formigueiro.

    A vinheta é muito boa; tem uma levada natalina que nos enche de esperança vazia e passa a sensação de que toda a inépcia da politicagem tupiniquim, no bojo, é coisa pequena que não afetará em nada nossa vida. Suas indefectíveis notas xilofônicas enlevam nosso espírito. Surge ao fundo do patrocinador, e depois se funde com a vinheta nacional, com um leve delay, aumentando a sensação inequívoca do ouvinte de estar em rede. É peculiarmente prazerosa essa sobreposição, como se fossem duas fitas magnéticas emendadas por durex, que em sua imperfeição transmitem a ideia de que, afinal, nem tudo é linear no mundo digital.

    Com menos de um mês levando e buscando Zé Bigorna na “colinha” dele, já perdi o escapamento do automóvel. Deu pra ver pelo retrovisor quando ele caiu e se acomodou às margens da estradinha empoeirada. Passei a andar bem mais devagarzinho, e quando o sujeito, em sentido contrário, passa na tora, me reto, e penso logo na hipocrisia inerente à natureza da gente, contraditória, que matricula um filho numa escola alternativa à neurose social em voga, enquanto replica em nosso mundinho perfeito o pior do modelo vigente – modus horribilis. Mas faço questão de cumprimentar a todos. Os mais velhos agradecem a distinção demonstrando aceitação à boa conduta. Os menos, muitas vezes passam com vidros e óculos escuros – as novas gerações sempre tem uma empáfia genuína quando comparadas às antecedentes.

    Entrementes, o apresentador do nosso programa atinge o limite máximo do reacionarismo suportável, tornando-se um mau carona. Desligo bem a tempo de evitar o comentarista de política - diz-se, à boca miúda, que neguinho anda trocando o chá pelo purgante, nas reuniões da ABL, só para evitar o fleumático membro. Fiquemos apenas com os cascalhinhos e o motor desregulado.

    Chegando à “colinha”, é hora de ir ter com o Bigorna. Antes de mostrar a cara, namoro, como um sujeito apaixonado, aquela linda figura, à distância. Jamais o flagrei em apuros, zangado ou choramingando, e quando apareço, sorrimos juntos. Ele corre ao meu encontro e eu o sufoco com tantos beijos e cheiros; é a coisa mais deliciosa do mundo! De repente ele se lembra de algo e suspende o dengo. Me encara com certa tensão no olhar e me segura pela barba, com as duas mãos, trazendo meu rosto para perto do dele:

    - Pão! Pão! Pão!... – clama.
    - Estão lá no carro, à sua espera, meu lindo... – E ele sorri de mostrar os dentes.

    No trajeto de volta ele pouco fala e muito come. Só não quero que ele adormeça antes de chegarmos. Quando estaciono, está quase de olhos fechados. E se zanga porque ainda troco a fralda, a roupa, lavo pezinhos e mãozinhas, e dou aguinha, antes de levá-lo à rede, embalando seus sonhos enquanto declaro meu amor.         

sexta-feira, 17 de março de 2017

A Solidão das Madrugadas

Zé Bigorna, flagrado num carpado lateral.


    O choro do bebê invade meus sonhos e dá leveza à minha cabeça, antes afundada no travesseiro. Desperto. O silêncio momentâneo engana – me reacomodo -, e o neném novamente reclama. São 2:43 a.m.

    Ao meu lado, a mãe dorme profundamente. Desde o desmame noturno, quando ela iniciou a tentativa de recuperação das horas de sono que perdera nos quatorze meses anteriores (sem contar o período da gestação), não escuta mais os choros da madrugada. O cérebro dela sabe que eu tô na parada e desliga. Me sento, dou uma suspirada conformada, procuro pelas meias ao pé da cama e saio tateando a parede, até alcançar a maçaneta da porta. As meias são fundamentais porque me dão pés de gato para escapar em silêncio.

    Entro no quarto e me aproximo do berço; só então vejo que Zé Bigorna está sentado – mau sinal -, e chorando de sono – bom sinal. Ao identificar minha voz, interrompe o choramingo para declarar sua vontade; “mamãe...”, no que emendo “tá dormindo” e, deitando-o sob lamuriosos protestos, engato uma canção inventada na hora, enquanto vislumbro meu dia seguinte esvair-se em sonolência e cansaço. Nas letras, incluo sempre seus colegas de crime (i.e., os marginais da creche), além de muita ação com a bola (que rola) e com a vovó (porque é oxítona terminada em ó). Pego de surpresa por tantas referências frescas ao seu cotidiano, ele silencia, vira-se de bruços e, antes de saber quê ou por quê, adormece. Eu também; em pé.

    A tensão para sair, em silêncio, fechar a porta, em silêncio, dar uma passadinha no banheiro e fazer xixi, em silêncio, caminhar até quarto sobre o chão de madeira que estala, em silêncio, e me deitar na cama que geme, sem acordar a mãe, em silêncio – isso é que me desperta, no que por vezes recoloco a cabeça no travesseiro quando o sono já ficou perdido pela casa. Tenho de buscar pelo nada absoluto se quiser voltar a dormir. A tática do travesseiro sobre a orelha costuma funcionar contra eventuais roncos de motor ao longe, o que indicaria a proximidade do nascer do dia. Sinto calafrios quando escuto o “baú das cinco”, que chacoalha a madrugada trazendo trabalhadores do Paranoá para o Plano Piloto.

    Quando o bebê acorda outra vez, pode se pensar que não se passaram nem 5 minutos, e em verdade foram quase duas horas. Nem mesmo havia se estabelecido, o sono é interrompido, ainda raso, dando um nó no pensamento da gente, misto de ódio e conformismo. Precipito para o quarto de Zé Bigorna. Parece que ele se espremeu na quina do berço, e isso o acordou. Mamãe me cobra há meses para transformá-lo em caminha. Ai que sono... Nunca dá tempo. Ajeito o menino cá embaixo, cubro (sinto amor), passo a mão na barriguinha e tento me lembrar como era a melodia da canção de há pouco. Não lembro. É fundamental cantar alguma coisa logo para captar sua atenção, ou o choro fica forte. Enumero então todos os nomes que me vem à cabeça e, após algumas viradas e remexidas, ele finalmente volta a dormir. Percebo que dessa vez me esqueci das meias. O piso emborrachado me faz prisioneiro. Ele se mexe ainda mais algumas vezes antes de se ajeitar num aconchego que parece ser duradouro, ressonando gostosamente. Prendo a respiração. Tiro meu pijama e faço uma trilha até a porta do quarto. Atiro a cueca no chão e pronto; liberdade!

    Volto para a cama, dou uma espiada para conferir o nível de luminosidade que entra pela porta que dá para o pátio interno, rezando para que esteja tudo muito escuro lá fora. Quando não está, vindo até acompanhada da zoada de umas maritacas, bate um certo desespero; mas que fazer? 

    A mãe continua dormindo.