sexta-feira, 27 de junho de 2014

Crônicas da Copa - Mordidinha no Ombro

Hincha charrúa pronto para pegar o Blatter dicunforça
“For the good of the game!” - é assim que a FIFA alardeia ao mundo suas intenções em relação ao futebol. Portanto, para o bem do jogo, é bom que todos joguem limpo.

Não ria, cético leitor; a FIFA preza pelo fair-play. Prova disso é a exemplar punição sentenciada ao guerreiro charrúa e atacante uruguaio, Luizito “El Conejo” Suárez, por conta de uma mordiscada num cannelloni italiano, seu colega de profissão. Com a cajadada, a toda-poderosa pretende matar dois coelhos: auto proclamar-se a guardiã da bola, além de advertir aos maus elementos que ali as regras existem para ser cumpridas. A entidade parece resoluta em extirpar do esporte qualquer sintoma exacerbadamente humano, projetando no horizonte uma peleja robótica, protagonizada por tão infalíveis e obedientes jogadores.

“O vídeo-tape é burro”, disse Nelson Rodrigues, quiçá o homem que mais compreendeu a alma da gorduchinha. Mas de que adianta emperolar o porco se a dona do jogo, que já não dá ouvidos às tradições da bola, escuta muito menos aos poetas e filósofos dessa Escola? Ela não somente confere as imagens da partida, como dá vida a transgressões não computadas pelo juiz, penalizando o infrator por meio de um hipócrito tribunal post mortem.

Suárez virou bode expiatório por ser reincidente. Na final da Copa da Alemanha, Zidane, que com seu cabezazo na caixa dos peitos poderia ter simplesmente matado o Materazzi, recebeu apenas três partidas de suspensão – algo muito coerente e justo, creio -, e isso porque já havia anunciado a aposentadoria.  

Mas seguindo a lógica bizarra ora em voga, o símbolo “Pelé” seria, por exemplo, hoje, menor do que é. Pela cotovelada na fuça de um uruguaio, na semifinal de 70, o crioulo teria pegado ao menos dez partidas de gancho, tamanha a violência do golpe. Tudo, no entanto, ficou em celestes nuvens; ele jogou a Final, imortalizou-se e fez da camisa 10 canarinho um ícone mundial. Nada disso teria rolado se os cartolas tivessem metido a nariga onde não são chamados.

Isso para não falar dos milhares de pênaltis não marcados, dos gols mal assinalados ou sequer validados e dos corações infartados por equívocos da arbitragem. Será que o bandeirinha suíço que deu o famoso não gol inglês, em Wembley66, vai ter sua honra e seu nome depreciados pela FIFA em praça pública, agora que se instituiu as câmeras na linha do gol? Seu erro causou uma derrota em final de Copa, enquanto que o de Suárez, somente uma escoriação. Qual equívoco selou mais vidas ou mudou mais destinos? Por que, então, a FIFA age como uma divindade envolta em castidade para selar o porvir dos verdadeiros protagonistas do espetáculo, sem nenhuma responsabilidade?

E mais: o que ela quer dizer com nove partidas de suspensão e quatro meses longe de qualquer atividade relacionada ao futebol, proibindo o indivíduo, inclusive, de freqüentar estádios – sem mencionar as 100 mil libras de multa? Aviltamento público? Não sou defensor das bordoadas, mas qual a diferença entre uma mordida e uma cotovelada na cara? Ou de uma cusparada no olho? Quantas pancadas nebulosas não são dadas, diuturnamente, pelos campos de futebol, mundo afora? O padrão-FIFA quer criar jogadores insensíveis, sem emoção?

Zizou justificou que o italiano havia ofendido sua irmã e sua honra, e todos o perdoaram. Isso torna sua cabeçada menos violenta que a dentada de Luizito? Ou menos letal? Menos perigosa? Que jurisprudência ou moral tem a FIFA para acusar este ou aquele por jogo sujo? Logo ela, que merece o epíteto mais do que qualquer outra entidade capitalista no planeta. Logo ela, que inventa uma Copa no meio do deserto e mandou o bom senso se Qatar!

Obviamente que não se trata de perseguição, como alegam os uruguaios; do contrário o mediano Diego Forlán nunca teria sido eleito o melhor da Copa passada. Mas o viés totalitário e injustificável da punição contribui para desconfianças, além de um natural arrefecimento da nossa paixão em relação à Copa. A FIFA não entende de futebol e age com recalque. Toda solidariedade ao Povo Cisplatino. E mordidinha no ombro pro Blatter.



texto originalmente publicado no Borogodó Futebol Clube

foto: joão sassi










Nenhum comentário: