quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

Personna Mutantis

Uma Nova Humanidade
"Não, não tenho caminho novo, o que tenho de novo é o jeito de caminhar."

      Thiago de Mello

Fala sério que já estamos em 2012? Putz, quem aguenta essa pressa? Na boa; isso está ficando chato!

Entra ano, sai ano, e é sempre a mesma coisa; neguinho tentando nos enfiar goela abaixo a eterna sensação da esperança naquilo que é “novo”. Como se o bonito invólucro transformasse o produto!

Por acaso alguém conhece um psicopata que foi tocado pelo condão da Fada Sininho, em noite de Ano Bom, tornando-se, a partir de então, um cordato cidadão? Ou um político que seja ex-ladrão, que tenha se arrependido da corrupção no ápice da comemoração, tornando-se exemplo ao correligionário de ocasião?

Ou será que, dentre os premiadíssimos leitores, há aquele que tenha decidido que a partir da virada de ano, passaria a lavar as mãos após dar aquela sacudida no bilau? Respingos e gotículas à parte, balela total, né não? (Nota: este Maltrapa lava)

Eu, pelo menos, não me lembro de nenhuma mulher haver dito: “Como é ano-novo, resolvi parar de dar em cima de homem casado!”. Na verdade, podem até dizer, mas cadê aquela que tenha cumprido a promessa?  Cadê? Mostra aí!...

Mesmo em tempo de “amor e esperança”, tem muito morador que buzina em área residencial, e não vi indício de que iriam deixar de fazê-lo por conta do ano que chega. Ou de desperdiçar um Nilo de água, lavando o calçamento e, pasmem, o asfalto em frente a suas casas; não vi menção de que tão cedo reveriam seus conceitos. Nem o show do Roberto Carlos em Jerusalém foi capaz de motivá-los a tal, ainda que suas mensagens sejam tão ao gosto da classe-média da Capital.

Não vi também qualquer anúncio oficial quanto à possibilidade da nossa Presidenta passar a discutir questões delicadas - conquanto sejam de um estrondoso e negativo impacto humano e ambiental - de um modo digno e responsável. Belo Monte?  Porto de Ilhéus? Devastação de Mata-Atlântica virgem, Floresta Amazônica, comunidades ribeirinhas, povos indígenas, corais e manguezais? “Ah, tá...” – disse ela. E pensar que, só porque o ano é novinho, o modus operandi da política vai mudar? Só o Tiririca tem a resposta, né, abestado?

Na boa, alguém aqui acha que uma bela noite de Réveillon - bebendo a melhor cachaça do mundo, esticada no palheiro do celeiro, em meio a todos os bezerros de sua fazenda - fará Kátia Abreu se tornar mais amorosa? Ou educada? Ou respeitosa? Fará? Só mesmo se o menino-Jesus saísse da garrafa para tocar aquele coração de soja...

Mas se, então, toda a energia pretensamente positiva emanada pela humanidade fosse realmente aproveitada pelo cosmos, transformando-se, pois, em combustível para mudanças reais em nossa existência? Que nos estimulasse a pensar na pequenez do modelo de vida que o mundo abraçou; feio, sujo, malvado... No qual os atuais bambambãs são pessoas que agem à imagem e semelhança desse modelo desumano, sendo ainda invejadas e copiadas por bilhões.
 Afinal, quem aguenta viver de tanto simulacro?

Quem aguenta o Natal tão material? Ou o Réveillon sem ritual? O que dizer sobre o atual Carnaval?  O São João? Os coitados do São Cosme e Damião? Cadê a essência dessa bodega?  Até os sacrossantos ovos da Páscoa, esses canalhas conseguiram piorar e diminuir; puta merda!

Será mesmo que desejar um bom ano não deveria significar refletirmos radicalmente sobre nossos conceitos, ou mesmo sobre a falta de conceito que impera em nossa contemporaneidade?

Por que não aproveitar essa desgraça que se tornou a vida moderna e fazer uma parada nos boxes, desenvolvendo alternativas para prosseguir, não necessariamente objetivando chegar em em primeiro, mas que fosse, naturalmente, juntos? 




foto de joão sassi


sábado, 17 de dezembro de 2011

Watch out, fellow Charles!

"Estela" e a Ditadura envergonhada
Quem poderia imaginar que um embaixador americano tivesse sentimentos?

Charles foi alguém que poderia ter se encaixado neste perfil. Foi embaixador americano em terras tupiniquins durante o início do período mais recrudescente da ditadura militar brasileira. 

Não sei por que não morava em Brasília (já, há quase uma década, a Capital Federal); talvez porque em Brasília não houvesse ainda embaixada.

Se já houvesse cá uma casa tão bonita como a que Charles morava com sua amada Elvira, naquele bucólico Rio dos anos 60, é certo que não teria sido sequestrado - como foi - em setembro de 1969.

Tomou uma coronhada no coco, foi encapuzado e feito refém de militantes de esquerda radicais. De um minuto para o outro, deixava para trás uma vida de mimos e paparicos para estar num quarto úmido e sem janelas, sendo ainda vigiado, in loco e diuturnamente, pelos assim chamados “terroristas”. Charles os observava, estáticos à sua frente, encapuzados e de arma em punho, a espreitá-los nos olhos pelos furos tenebrosos em seus gorros à la Ku-klux-klan.

O embaixador era, agora, moeda de troca, e sua vida seria poupada em troca de outras quinze vidas. Se a exigência terrorista não fosse atendida em dois dias, Charles morreria. É provável que ele não soubesse dessa prerrogativa, mas não é necessário se informar sobre o que ocorre no mundo externo quando se tem a vida em patente ameaça.

Apesar do temor, o embaixador demonstrou também muita perspicácia ao traçar o perfil de seus raptores apenas pelas poucas palavras que escutara e pela aparência de suas mãos – as únicas partes do corpo à mostra.

Citou o fanatismo daquele que seria o mais jovem e aguerrido do grupo, e também a amargura e o rancor de uma das lideranças , para quem, segundo Charles, “a obstinação superara a ignorância”. E pela delicadeza da pele , ficou a imaginar que desígnios haviam feito de uma jovem de voz tão bela enveredar pelo radicalismo da luta armada. E se deixou encantar pelo idealismo de um rapaz inteligente que era o único a falar Inglês e a não usar o capuz enquanto estava à sua frente.

Mas Charles, apesar de filosoficamente sensível, não era tão bem informado sobre o país que representava, pois afirmava desconhecer as práticas de tortura estimuladas ou ministradas pelos Estados Unidos em solo latino-americano: - “Eu apenas represento os interesses do Estado”, afirmou o gringo, quando interrogado pelos “terroristas”.

Os terroristas, no entanto, chamavam Charles de “senhor” e, em momento algum enquanto ele esteve aprisionado, o agrediram fisicamente - senão a citada coronhada, motivada por um ato de desespero do próprio Charles, à hora do sequestro. Além disso, permitiram que o cativo escrevesse à Elvira, tranquilizando-a, e se preocuparam, inclusive, em lavar as camisas e os lençóis do embaixador enquanto durou seu martírio.

A ação do grupo foi bem sucedida, e três dias após o rapto, Charles estava de volta à embaixada e, alguns meses depois, aos Estados Unidos, a fim de realizar uma bateria de exames médicos.

Enquanto Charles fazia seu check-up em Washington, o grupo que o sequestrara no Brasil era desintegrado. Alguns haviam sido assassinados, outros estavam presos, e mais um bocado, sendo brutalmente torturado nos porões da vergonha militar. A estes, choque e pau-de-arara como cartão de visitas; nada de lençóis limpos ou camisa lavada. Mas Charles não sabia de nada.

Apesar da sensibilidade que teve ao descrever seus algozes, Charles não se mostrou tão arguto quanto ao destino de tanta gente, explorada, torturada e assassinada mundo afora. 


Numa coisa, porém, ele estava certo: às vezes, a obstinação supera a própria ignorância.


segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

Madalena e as Joaninhas




O casal, já entrando na meia-idade, caminha pelo parque arborizado, no centro da cidade, aproveitando o clima ameno da manhã. Ele, mal humorado; ela, sorridente, procurando joaninhas com o olhar: - “Que lugar linnndo! Veja quantas joaninhas!!! Olhe bem, Estanislau, quando é que tu vê isso na Paraíba?”, perguntava ela, provocando o marido, que não parava de reclamar das caminhadas que o médico receitava.

Enquanto se deslocam lentamente por conta do evidente sobrepeso, alguns jovens muito mais bem dispostos lhes cortam o caminho em vigorosas passadas ou atléticas corridas. Exibem corpos que os dois só estão acostumados a ver nas novelas da televisão.

Passando um sujeito grisalho, muito bonito e bem-encorpado - portanto "rival" de Estanislau - Madalena deixou-se levar por tão bela imagem, revelando inescapável brilho no olhar, além daquele indisfarçável, pois prazeroso, movimento com o canto da boca...

Quando a alma sorri, não tem jeito; o corpo acusa.

Percebendo o encantamento de sua companheira, Estanislau, gordote branco-leite do pulso grosso, porém careca e baixote das canelas finas, chegou a arregalar os olhos, mas não acusou o golpe. Optou pela ponderação, apenas acompanhando a cena. Preocupou-se em não deixar que Madalena percebesse que ele havia percebido.

Caminharam mais um bocadinho; ela, agora, ainda mais bem-humorada, e ele, complacente, digerindo a situação. "Na Paraíba, isso acabava em morte", pensou (mais por pensar que por planejar).

Antes que ele se contaminasse com o ciúme ou se enraivecesse pela honra de cabra-macho ferida, uma estonteante morena atravessou o caminho do casal, em passos pouco mais lentos, ainda que mais consistentes.

Notando que não somente seus passos fossem seguros, mas também sua saliente bunda, muito bem involucrada por um minúsculo shortinho de ginástica, Madalena não pestanejou ao resmungar: "Como é que essa menina não se envergonha de usar essas roupas? Fica mostrando tudo aí, pra todo mundo ver!...".  

Agindo deliberadamente em concordância à fala da esposa, como se houvesse previamente planejado aquela ação, Estanislau não apenas acompanhou a passagem da beldade, mas se deu ao luxo de dar uma paradinha, com direito a torcida de pescoço, para acompanhá-la com total atenção.

A mulher se eriçou:

   - Ôu, não tá me vendo aqui, não?!
   - Ôxi, claro que tô!...
   - E mesmo assim vai ficar olhando a morenona passar?
   - Ôxi, mas não foi tu mesmo que acabou de dizer que a menina tá mostrando tudo?...
   - O que num significa que tu tem que olhar também!...
   - Mas, olhe... Se não foi tu mermo, agorinha ali, que ficou babando no cabeça-de-giz? Pensa que eu não vi? Todo galegão, barbinha feita, camisa de gola, toda refinada, uns cotocão de canela, grosso assim... Rum, tu pensa que eu sô cego, Madalena? – devolveu o marido, surpreendendo a companheira. - “É melhor olhar assim, com você do meu lado, do que fazer escondido, como tu fez; é ou não é?”.

Aquilo de “fazer escondido” acabou com ela. Mulher muito séria e correta, não estava preparada para o embate. – “É ou não é?”, insistiu ele.

Com o olhar cheio de vergonha, balançava positivamente a cabeça, concordando com tudo o que ele lhe dizia ou perguntava.

Era a primeira vez que era flagrada pelo marido olhando para outro homem, o que a deixou muito desconcertada. Ainda que se tratasse de um ato isolado, de um mero acaso, fora o suficiente para que Madalena voltasse os olhos para o chão e encolhesse os ombros, evocando para si a imagem da pecadora que nunca fora.

Assim, entristecida, seguiu a caminhada, cabisbaixa, e nem mesmo as joaninhas lhe devolveram o sorriso...



quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

Eu não vi Sócrates jogar


Pena para quem não viu...


Eu não vi Sócrates jogar... Não, eu não vi.

Eu era muito pequeno e apenas sabia que ele era um barbudo que filosofava com peripatéticos colegas. Diziam que era grego, mas eu sabia que ele jogava no Brasil.

Meu pai dizia que ele era respeitado por todos por ser um grande homem; o que era fácil de ver, até para alguém de tão pouca idade: quando Sócrates entrava em campo, era sempre o mais alto, é claro que os outros deviam ter medo dele...

Então meu pai me disse que o respeito era pelas coisas que ele fazia, como “ensinar o povo a pensar”. Logo, imaginei o Sócrates saindo do Pacaembu, depois do jogo, e indo para uma escola enoooorme - cheia de gente, cheia de povo -; e o Sócrates lá, ensinando o povo a pensar.

Eu dizia a ele que seria jogador e que também deixaria a barba crescer, assim faria muitos gols e poderia ensinar o povo. Achava muito legal ele ser um pensador grego que jogava pelo time do Brasil e ainda ser professor!

   - Sócrates é medico; é o “Doutor”-, corrigiu-me ele.

Ou seja, além de filósofo e jogador, ele era professor e também doutor – e grego! Mesmo assim, perdemos aquela Copa... Foi uma sensação tão devastadora que, tirando o Laranjito, tudo o que eu me lembro do Mundial de 82 é a foto de um menino chorando, abraçado à bandeira brasileira.

Os amigos dele ficaram tão tristes, que foram todos embora para a Itália. O Falcão já tinha ido, e na mesma leva foram Cerezo, Zico, Júnior... Mas não o Sócrates, pois ele tinha planos auspiciosos para o País: por meio da palavra, queria instaurar aqui uma Democracia! Meu pai me disse que democracia era o contrário do que aqui a gente vivia; falou que o povo é quem mandaria.

Foi uma resposta tão abstrata que somente uma criança tão bem a acataria. E eu já pensava naquele general, de quem meu pai falava tão mal, virando garçom de pizzaria. E que os soldados que prendiam e batiam nos amigos do meu pai virariam defensores do povo, cuidando e protegendo o cidadão brasileiro.

E como homem de palavra, respeitado que era, Sócrates encarnou o ser revolucionário que suas barbas desgrenhadas evocavam e fundou a Democracia Corintiana. Ele e mais um bando de malucos do Parque São Jorge.

Sócrates ficou tão entusiasmado com a revolução, que avisou ao povo que tinha planos ainda mais ambiciosos para o futuro. Naquele dia, foi tanta gente a querer escutá-lo, que a aula teve de ser transferida para uma grande praça. E lá, avisou:

   - “Se a Emenda Dante de Oliveira passar, eu não vou embora do meu país!!!" -, e a multidão delirou...

Eu não tinha ideia quem era Dante ou o que ele queria remendar, mas tinha certeza de que ele era italiano, pois o remendo dele não passou e nos levaram o Sócrates embora. Só podia ser coisa dos generais...

Mas os militares logo caíram, e todos os rebeldes voltaram; inclusive o doutor Sócrates.

Voltou, mas já não era mais o mesmo; já não tinha condições de permanecer no front. Já não era o grande jogador de quem ouvira falar em minha infância. Estava feita a sua parte nesta guerra. Doravante, se tornaria lenda.

Não, amigos, eu não vi Sócrates jogar. Não, eu não vi...


Apenas senti.


foto de joão sassi