quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Aonde a Água Abunda



Água: só sente falta quem não tem


Acho que minha vizinha tem um toc.

Ela sempre manda que suas duas empregadas lavem o calçamento em frente à casa dela. Todos os dias. Duas vezes ao dia.

Muito esmeradas, as mucamas lavam-na à vontade e, mesmo sem baldes, se esbaldam com a aguinha fresca que jorra ininterruptamente da mangueira, escorrendo pelos seus pés, enquanto salpicam OMO em pó pelo chão, para efeito de uma limpeza mais eficiente. A recreação costuma durar o tempo que o ponteiro maior do relógio leva para dar uma volta completa; é o happy-hour delas (sempre multiplicado por 2, registre-se).

O granito fica cinzinha, cinzinha!... Ainda mais quando comparado aos de todos os vizinhos da rua; "ai, como são porcos!". Como será que os vizinhos não se tocaram para a limpeza de suas calçadas, né?

E tome esfrega-esfrega com muita água desperdiçada e sabão em pó goela de Gaya abaixo, pela manhã e pela tarde - faltando apenas alguém que cubra o turno da noite para que a saga fique completa, e nem mesmo um grama de poeira possa ali sequer pensar em se instalar.

Não importa se é Primavera, Verão, Outono ou Inverno; o importante é garantir aos transeuntes o mais puro e límpido metro quadrado de granito que já se viu por estas bandas - padrão Noroeste, por assim dizer; coisa para Paulo Octávio ou Luíz Estêvão nenhum botar defeito!

Na verdade, tampouco importa se está chovendo ou fazendo sol. Na manhã da última segunda-feira, quando Brasília estava, pela primeira vez em quase 4 meses, desfrutando de um amanhecer úmido e desejado, lá estavam as irmãs-caverna açoitando a calçada com mangueiradas de vergonha e ignorância. Se ao menos estivessem se valendo da água natural para fazê-lo, mas nem isso... Sem mangueira, não deve ser a mesma coisa. Mangueira é sinal de poder, pujança e... ignorança.

Como desgraça pouca é bobagem, calçada também o é. Com tanto afinco, lavam também o perímetro da rua em frente à garagem que lhes caberia, imaginariamente. Sim, usam a água para lavar a RUA ASFÁLTICA, pela qual transitam nem sei quantas dezenas de carros, diariamente. Todos devem se satisfazer muito ao pensar: "uh, hora de passar por aqueles dois metros de rua mais limpos de Brasília!".

Minha vizinha parece que tem um toc, mas ela nunca se toca.

Ao fim de mais uma jornada, é hora das moças se retirarem; é hora de ir pra casa. Natural que tomem um banho antes de voltar ao lar, situado distante da pujança aquática aqui reinante.

É melhor assim. Vai que falta água por lá...

photo by joão sassi
 
 


 

quarta-feira, 28 de setembro de 2011

MANIFESTO AO TORCEDOR PELA MEMÓRIA DO FUTEBOL BRASILEIRO

O último jogo de Mané foi no D.F., em Planaltina.
                 
Rogo ao interesse de todos em fazer valer o legado cultural brasileiro, pois está claramente em curso, na Capital do Brasil, um processo nefasto de stalinismo esportivo.

Nosso proto-governador (alguém o viu? o vê? o verá?), assemelhando-se mais a um borra-botas que a um chefe do executivo, parece não querer interferir no "processo natural" de desmemorização da população brasiliense e brasileira. Contrário fosse, não teria aceitado a escatológica idéia - gestada pelo agora célebre corruptor e ex-governador José Arruda - de transformar nosso Estádio Mané Garrincha em Estádio Nacional "EMPRESA X" de Brasília.

Entenda-se por "empresa x", qualquer multinacional que coloque motivos suficientes nos bolsos de nossa classe política profissional (que, afinal, sempre exige ser muito bem paga para tal).

Numa clara afronta àquilo que de mais significativo o artístico futebol brasileiro produziu - gênios da bola -, querem enfiar-nos memória abaixo um nome-monstrengo, como se alternativa não existisse. Agem como se esta fosse a única maneira de oferecer à população um estádio moderno e bonito; vendendo-se a alma.

Trocar o nome de Mané por o de uma empresa qualquer é ferir de morte o orgulho nacional; é desrespeitar a história, a memória, a luta, o sucesso e a glória de uma nação maltratada por colonizadores e ainda vilipendiada por eternos usurpadores. Mas que, apesar de todos os obstáculos impostos e perversões praticadas, ainda assim, revelou-se uma nação preocupada em rir e gozar, mais do que em matar ou acumular, como os conquistadores que tentaram e ainda tentam "civilizar" o mundo por meio das armas ou da covardia financeira. Somos um povo cujo imaginário se confunde com a realidade, estando ela em constante processo de "ludicidade". Não por acaso, eis aí a definição do Mané.

Garrincha representa um Brasil miserável, mas lúdico, em meio ao qual, de membros aleijados brotou a alegria, não somente de um único povo, mas também a de outros.

Que o digam suecos - maravilhados pelos desconcertantes vaievéns do Mané pelos aloirados campos de lá, em 58 - e chilenos - que torceram por nós, mesmo tendo Garrincha os humilhado nas semis de 62. Aliás, Garrincha jogou tão bem aquele jogo, que mesmo tendo sido expulso (após revidar a agressão de um desleal adversário) teve presença garantida na final, posto que os deuses do ludopédio não aceitassem qualquer resultado sem sua presença. A FIFA entendeu o recado e o pôs em campo, contrariando a regra mais básica da suspensão  automática, sempre levada a cabo após uma expulsão

Então, pergunto: se até a pérfida, retrógrada e lodosa FIFA pôde entender isso, àquela época, como podem nossos atuais dirigentes políticos se recusar a fazê-lo? Será que algum desses anômalos teria a idéia de tranformar, por exemplo, o Maracanã em "Estádio Municipal Google do Rio de Janeiro", atirando a memória de Mário Filho, irmão de Nelson Rodrigues, às catapultas do limbo? Parece loucura, né? E é.

Pois foi com esse sentimento tenaz de contrariedade e indignação que me vi obrigado a partilhar com todos a minha repulsa ao que se está em andamento. E é por isso que os convoco a participar dessa batalha, dividindo com os seus esta questão, chamando-os à luta, para que façamos valer o sentimento de Alegria do Povo em detrimento da Vergonha Nacional.

Além do mais, qualquer cidadão minimamente antenado e sensível às causas humanitárias há de saber que foi num espaço homônimo, o Estádio Nacional do Chile, que tantos perderam a vida nos tempos pinochetianos. Para que reforçar tão triste emblema numa capital que, mesmo tão jovem como a nossa, já se contaminou pelos ditames autoritários de um período de exceção?

Por que, então, permitir que se achincalhe assim a memória do torcedor? Por que a desconsideração a tudo o que Garrincha fez, suprimindo seu nome em prol de uma instituição mercantilista? Não há patrocínio que substitua as risadas ou os momentos de êxtase que Garrincha nos proporcionou, pelos quais nunca poderemos retribuir, senão reconhecendo seu lugar na história por meio do respeito que lhe é devido.

Façam valer a voz da vida e entrem em campo ao lado do Mané para viver o futebol como se deve: como uma alegria popular.

Um abraço a todos e um viva à nossa história! VIVA GARRINCHA!!!

João Sassi - um mané brasiliense

ps: Apenas a título de estímulo, relato que uma dessas megacorporações transnacionais da vida tentou usurpar a memória do El Colón - centenária casa de espetáculos buenosairense - no que foi apeada da idéia, mediante veementes protestos populares. O argentino pode ser tido por alguns como um povo chato, prepotente, arrogante e o caralho, mas é fato que sabem fazer barulho quando lhes passam a mão na bunda. O resultado está lá; um teatro lindo, magnificamente restaurado, e com o nome que lhe fez história.

arte: marcya reis