terça-feira, 23 de agosto de 2011

O Incrivelmente Injustiçado e Heróico Negro Barbosa!



O Injustiçado Barbosa: lendário, ainda que vascaíno.
É cedo. Escuto o barulho da maçaneta quando ela abre a porta do quarto.

Caminha pelo corredor enquanto ainda desamassa a cara de sono. É engraçada a cara que a gente fica quando acorda. Lola e Bibi, as mais carentes das quatro gatinhas, já estão a seus pés, miando e querendo carinho.

Quando ela aparece, me vê confortável, na poltronona da sala, lendo. Senta-se no sofá, onde a vejo espreguiçar-se por trás do raio de luz que intercepta o ar da manhã. As janelas estão abertas e as cortinas denunciam o frescor da corrente que corta o ambiente de um lado a outro.

Ela acaricia a cabeça da pequena Lola, já resfregada entre suas coxas.

A cena me permite interpretar o clássico gesto de deitar o livro ao colo e levantar os olhos, cedendo cavalheirescamente a atenção a quem por amor a merece.

- Sonhei com os presidentes do Brasil - disse ela, enquanto eu pensava no nome de Venceslau Brás. - Sonhei com muitos... - continuou. E eu imaginando Deodoro, Floriano, Hermes...

- Ainda me lembro da dificuldade para aprender a escrever o nome "GARRASTAZU"; quando aprendi, fiquei toda feliz: Gar-ras-ta-zu! - completou.

- O Médici foi até 74, não foi isso? E o Geisel, de 74 a 79, certo?

- Não. Acho que o Médici foi até 76... Eu estava aprendendo a escrever, e o nome dele era muito difícil: Emílio Garrastazu Médici!

- Puxa, escrever isso tão cedo não é brincadeira! - Puta palavrão, pensei. E então me veio à cabeça uma cena marcante:

- Lembro da primeira palavra que li para meu pai!

- Qual foi?

- Eu tinha 6 anos. Estávamos no estacionamento da casa dos meus avós, dentro do carro, uma Brasília Azul, ano 75.

- Sim...

- Ele havia acabado de comprar um "NOVO ATLAS" para dar de presente a Pedro e Lisa. Detalhe: Pedro tinha somente 7 anos, mas lá, só tava escrito "Para meus filhos, Pedro e Lisa..." - disse eu, resgatando lamúrias passadas - Peguei aquele livro grandão e li, na capa: - "No-va"... - "Novo!", corrigiu meu pai, que mesmo assim ficou feliz com o filho leitor. Eu tinha lido "nova", ainda que estivesse escrito "NOVO", em letras de fôrma garrafais...

Do sofá, ela me indagou com os olhos, em silêncio: Por quê?

- Acho que tem a ver com as letras "A" da palavra ATLAS, escrita logo abaixo, uma vez que eu estava apelando à lógica gramatical, segundo a qual palavras femininas caracteristicamente carregam e se encerram com esta letra. Muito provavelmente eu havia aprendido esta regra naquela mesma manhã.

- Tem sentido... Palavra do gênero feminino, letra "A".

- Sim, e "influenciado" por aquele tanto de "A", li "nova"... E nem cheguei a ler ATLAS, pois não entendi qual era o nexo de um "T" seguido de um "L"; isso eu não havia aprendido e não fazia o menor sentido para
quem ainda estava no VA - VÉ - VI - VÓ - VU...

- Você foi coerente.

- Sim, muito coerente! - concluí, exultante, reparando um erro cometido há trinta anos!
Comecei a me achar meio genial. A poltronona vermelha confortável; as janelas e as cortinas; a brisa; o livro ainda deitado e, claro, o feixe de partículas solar matinal que a tudo sacralizava - tudo se encaixava. E agora, a conclusão de que eu estava certo... Durante trinta anos, ESTIVE CERTO!, ó, céus!

Ela parecia admirar meu regozijo atemporal, contemplando-me enquanto eu pensava na astúcia que tive em associar o adjetivo ao sujeito da frase... E com apenas 6 anos de idade!...

- É a primeira vez que faço esta reflexão, desde então, e nunca tinha entendido o porquê do meu erro.

Não se tratava de uma constatação qualquer, mas de uma correção histórica. Por anos a fio, carreguei o fardo de ter errado logo em minha primeira leitura pública! O fato não chegou a abalar totalmente minha confiança, mas tinha algo de barbosiano naquele erro, posto que não o esquecia nunca.

Falo, claro, do extraordinário goleiro do Vasco e da Seleção Brasileira que foi eleito o bode expiatório na derrota de 50. O elástico guarda-metas, mesmo tendo marcado época, levou para o túmulo uma coroa que não era de flores, mas que fora outorgada a ele pelo sufrágio inclemente da história, pela qual fora injustamente declarado um rei bufão no fracassado Império do Futebol Brasileiro. Após a derrota, foi ainda algumas vezes campeão com o "Expresso da Vitória", máquina de futebol vascaína que dominou o cenário carioca na Era pré-garrinchiana, mas nunca foi absolvido.

Certa vez, na fila da padaria, foi interpelado por uma senhora que apontou para ele e disse ao filho que segurava pela mão: "Olha, meu filho, foi este o homem que fez o Brasil inteiro chorar quando tomou aquele gol...". Foi uma das coisas mais humilhantes pelas quais passou na vida, confessou, anos mais tarde.

O ápice de seu martírio se deu em 94, às vésperas da Copa dos EUA, ao ter sido barrado na entrada da concentração da Seleção Brasileira. Zagallo e Parreira tiveram calafrios só de ouvir o nome do ex-arqueiro. Então com 73 anos, Moacir Barbosa não precisa de mais aquilo para sua coleção de infortúnios.

Na tentativa de excomungar o pecado pelo qual fora acusado, chegou a queimar, numa fogueira feita no quintal de sua casa, as traves malditas do Maracanã, sob as quais sua via-crucis havia iniciado. De nada adiantou.
Barbosa morreu em 2000 sem cumprir sua sentença; segundo ele mesmo, "a maior pena aplicada no Brasil, que já dura 50 anos, bem mais que o máximo previsto pela Lei...".

Imaginem então, senhores, se uma nova gravação surge, de um novo ângulo, mostrando que a bola, digamos, tenha passado pelo lado de fora do gol, furando a rede? Barbosa estaria redimido, e é possível que até construíssem estátuas ou mesmo estádios com seu nome. Doravante, seria conhecido como o incrivelmente injustiçado e heróico negro Barbosa!

De súbito, senti-me um Barbosa renascido! Eu estava completamente enfeitiçado por aquele pensamento... E num arroubo de cabotinismo, repeti:

- É, eu fui muito coerente...

- É... - ameaçou finalizar ela, quando replicou, inapelável: - Mas teria sido mais se tivesse dito "NOVAS ATLAS"...

- ... Vacilei.

É, Barbosa, parece que aquela bola entrou mesmo, meu velho...


EPÍLOGO

Na verdade, à época, cheguei a perguntar ao meu pai a lógica da incongruência entre o gênero e a quantidade de "A" na palavra ATLAS. Vendo que seria complicado, àquela altura, inserir o conceito de "exceções" à conversa, ele me respondeu simplesmente que a vida é assim mesmo, cheia de incongruências...

Ps: Médici deixou a Presidência em março de 74.