quarta-feira, 15 de setembro de 2010

O Homem em Constante Evolução Amorosa - Parte III


Foi logo quando abri a porta da varanda, pela manhã, bem cedinho, que o vi machucado. A patinha estava inchada, enorme como a de um leão.

Não dei muita bola. Da última vez em que apareceu manquitolante, curou-se por conta própria. Era o caso de repetir o feito.

Ainda no trabalho, recebi a ligação de Otília, minha vizinha; como sofria a coitada – mais até do que o próprio cão! E gritava tanto que cheguei a pensar que realmente se tratasse de algo sério: - “Calma, Otília... O Simba é um cachorro descolado e vai saber como sair dessa; tem diploma de vagabundagem, sabe como é?...” – Mesmo aflita, mostrou-se resignada e despediu-se com um “Então, tá... Se você está dizendo...”.

Quando voltei pra casa, no entanto, entendi que a situação era, de fato, emergencial! Até os dedos (?) dele estavam gordos e deformados (!), e havia um grande ferimento, muito inflamado, não se sabe pelo quê. Fiquei preocupado, e logo tratei de forrar o porta-malas com jornais, colocá-lo ali e me picar para o veterinário mais próximo.

Pelo espelho retrovisor, vi como ele se esforçava por permanecer ‘de pé’, a fim de observar toda aquela paisagem que passava velozmente pela janela. Mas a distração não substituía a dor, e Simba gemia a cada solavanco. Olhei para seus olhinhos tristonhos e soltei um inapelável “Tudo vai ficar bem, amigão!...”, para, logo em seguida, vê-lo (sem o devido apoio) desabar na próxima curva!

De acordo com a veterinária que o atendeu, a patinha estava quebrada, mas nada poderia ser feito no prazo de uma semana, enquanto ele deveria tomar medicamentos contra as infecções, para somente então ver a possibilidade de colocar uma tala ou de realizar uma cirurgia.

Por esta informação, um raio-X, uma vacina e um punhado de comprimidos, paguei 440 pilas. Nesse momento, olhei para Simba e falei: - “Ou te abandono na BR, ou não voltamos mais aqui, meu velho...” –, no que ele respondeu de bate-pronto: - “Isto aqui é uma baiúca, mesmo; vamos nessa...”.

Pois então, expectativos leitores, a decisão de levá-lo de volta para casa selaria o início de uma nova etapa em nossa vida; uma etapa marcada pela quebra de um paradigma no qual Simba era um, e eu, outro. Doravante, porém, sob a égide desse novo paradoxo que se ia constituindo, eu passaria a ser um, e ele também, epistemologicamente zen.

Sou daqueles que dizia preferir os gatos aos cães. Mas quando aceitei cuidar do Simba, o fiz justamente por entender que o reforço de um estereótipo apenas limitaria minhas potencialidades como agente das coisas boas da vida. Com o tempo, no entanto, percebi ainda que o ‘cuidar’ não se restringiria somente ao ‘alimentar do corpo’, mas dizia respeito, principalmente, às necessidades da alma. E de uma relação marcadamente descompromissada, aos poucos, surgiu carinho e atenção.

Dar remédios a alguém é sempre uma responsabilidade. Quando o horário invade a madrugada, torna-se cumplicidade. As primeiras doses, ministrei-as em grande estilo: anônimas, num belo cotôco de salsicha. Simba os abocanhava à solapa, com gosto, sem mesmo parar para saber exatamente do que se tratava; simplesmente os engolia por inteiro, finalizando com uma lambida caprichada nos beiços, como quem diz “Cadê? Quero mais!...”.

Como salsicha pouca é bobagem, para as demais doses fui forçado a adotar o estilo desenvolvido pela École Zagalliana du Finesse et Gastronomie, mais popularmente conhecido como “você vai ter de engolir!”. Desse modo, analgésicos, antiinflamatórios, anestésicos e outras milongas mais - de manhã, à tarde e à noite (e madrugada adentro) -, eram literalmente enfiados goela abaixo. Como sofria e babava o pobre cão, enquanto eu o olhava, penalizado (mas resoluto), e insistia: - “É para o seu bem, camaradinha...”.

Por vezes, durante mais de um minuto, ele permanecia imóvel, acumulando os comprimidos na ante-sala de sua garganta, fazendo-me acreditar que ele os estaria engolindo, sem maiores dificuldades. Então, eu massageava seu gogó e ficava repetindo: - “Engole, Simbinha, engole...”, tal qual uma mãe sonolenta, em plena madrugada, a insistir que o filho beba do leite materno e durma de uma vez!

Na maioria das vezes, ele os engolia e baixava as orelhas – fazendo logo cara de ‘bom menino’, esperando por alguma recompensa (talvez as salsichas?); noutras, mastigava as cápsulas, deixando escapar aquele pozinho intragável dos barbitúricos, que logo produziam espuma, espasmos e outras reações regurgitantes... Ô, meleca!...

Quando a ‘fase das drogas’ ia se acabando, duas semanas depois, chegou a ‘fase da recuperação da pata quebrada por meio da aplicação imediata de uma belíssima tala’. O danado ficou simpati-cão com o alvíssimo aparato a dar-lhe um aspecto mais ‘responsável e comedido’, como quem ostenta uma bengala de marfim... Esta impressão durava o tempo de quatro ou cinco exclamações, pois mal Simba deixava a clínica veterinária (mais em conta), e já chegava ao carro com o rubro-terra característico do Cerrado impregnado em suas alvas ataduras.

A cada 48 horas, estávamos de volta ao veterinário para que se trocasse a tala, pois era necessário dar ao ferimento o devido tempo de cicatrização, para que nossas atenções se voltassem exclusivamente ao osso partido.

Não era nenhum sacrifício levá-lo lá. Ao contrário, era enorme sua empolgação quando eu abria o porta-malas do carro. Era fácil perceber o porquê: Simba era uma estrela em meio à cachorrada que por lá pintava! Era o mais dócil, o mais cordial, o mais sereno, o mais ‘legal’, o mais vira-lata, o único a não requerer focinheira, coleira ou preocupação, mas puramente admiração. Não latia para ninguém e preocupava-se eminentemente em cheirar rabos alheios, distribuindo alegria e delicadeza entre os presentes.

As dotôras o enchiam de elogios: - “Ah, que bunitinho! Ele é tão bonzinho!...”- , repetiam também, na sala de espera, gentis senhouras e encantadas moçoilas, todas enfeitiçadas pelo meigo e descarado olhar-de-cão-sem-dono que o pelintra lançava a quem lhe desse ousadia.

- “Nunca chamem a um homem ou a um cão de ‘bonzinho’; isso poderá trazer sérios problemas psicológicos no futuro...” -, rebatia eu, com olhar grave e profilático, para, ante a cara de espanto que se seguia, soltar uma gostosa gargalhada! Simba se excitava com meus gracejos...

Só não vi muita graça quando, num fim de tarde, de tão embevecido pela recebida atenção, Simba deixou um ‘toletão’ de recordação na recepção. Tive de sorrir amarelo e retirar o astro de cena antes que os tomates podres começassem a voar...

De ‘tala nova’, ia voando pelo jardim, fazendo levantar as folhas secas que cobriam o gramado. Soltava um xixi aqui, mais um pouquinho ali, e logo entrava no carro, perguntando “Para onde vamos?”.

Era um momento difícil, aquele, pois ao olhá-lo pelo retrovisor, só eu sabia que o estava levando de volta ao cadafalso, e que toda aquela excitação proveniente de inúmeros mimos recebidos logo daria lugar à tristeza proveniente da solidão de uma lavanderia fria e claustrofóbica. Eu vinha pelo caminho, empenhado em ludibriá-lo, conversando sobre um monte de coisas que lhe distraísse, impedindo que se lembrasse da angustiante situação que o aguardava em casa - mais ou menos como fazem os pais com seus filhos, quando estes estão acamados ou mal de saúde.

Mas não tinha jeito... Bastava estacionar o carro que meu olhar me denunciava. Ele já sabia reconhecer, pelas minhas feições, quando era chegada a hora maldita, e logo baixava a cabeça, e as orelhas, e o próprio corpo, encolhendo-se em melancolia e impotência – era o momento mais dolorido do dia.

Foi quando percebi o quanto estava em sintonia com ele. Foi quando percebi que não era nenhum absurdo me lembrar da hora do remédio, da troca da tala, de dar ração, de comprar ‘agrados’, de lavar sua morada provisória (deixando-a sempre limpinha e em condições agradáveis) ou de simplesmente ter o prazer de, sempre que abrisse sua porta, dar-lhe os afagos mais carinhosos que eu jamais havia dado num outro cachorro.

Contrariando ordens médicas, deixava-o livre sempre que eu estivesse por perto. Era certo que, se tivesse de passar 40 dias entalado numa lavanderia, o danado cairia em profunda depressão. E nesse aspecto eu poderia interferir positivamente. Ensinei-o a ficar sempre próximo a mim, por meio do carinho e do olhar. Era coisa que não existia nos tempos de outrora, quando eu simplesmente o alimentava e mal me lembrava de passar a sola do sapato pela sua barriga.

Foi assim que chegamos a esta última semana, com ele aparentando ter cada vez mais a noção de sua recuperação, mostrando-se cada vez mais agitado e saltitante. Noite passada, quando o levava para um tour noturno pelo terreno, Simba, num estalo, irrompeu breu adentro, sumindo na escuridão em busca de um gato que por ali passava.

Sem medir as conseqüências, parti atrás, em desespero, imaginando a lástima que seria se a pata se quebrasse novamente por aí por conta dessa corrida desenfreada. Quanto tempo perdido! Quanto dinheiro! Quanta energia gasta em sua recuperação!... Seria o fim da picada!

Corria pela estrada de terra, sem qualquer fio de luz que me guiasse, senão o som cada vez mais distante da tala de ferro indo de encontro às pedrinhas e cascalhos do chão. E eu gritava feito um louco, noite afora, como se fosse a coisa mais importante do mundo: - “Simba! Simba! Simba!!!”...

Quando o encontrei, não sabia se me sentia aliviado por não ter me estabacado no chão ou se descontava nele minha aflição... Então lhe dei um tapa nas ancas; mas tão forte que machuquei o dedo. Ficou inchado e dolorido; coisa de quem não sabe bater. Voltamos para casa em silêncio – ele com culpa, eu de bico. Mas quando chegamos, já estávamos ‘de bem’.

Toda noite, quando o trancafiava, olhava bem no fundo dos olhos dele e dizia quantos dias faltavam para ele voltar a ter a liberdade de antes. Foi uma forma que eu encontrei de atenuar meu sofrimento por ter de privá-lo tanto tempo de uma vida normal. E fora o episódio da ‘louca fuga em disparada mato adentro’, nada mais me irritou; nem os azulejos que ele quebrou, nem os sacos de carvão que ele rasgou, nem o cano de água da máquina de lavar que ele estourou ou mesmo os caóticos cenários de urina e fezes que muitas vezes ele me legou...

Esta noite, quando for trocar a água e os jornais do mocó dele, não vou sentir nenhuma culpa ao fechar a porta; vou apenas segurar a cara dele e dizer, bem alto: - “É amanhã!!!”.

Simba não é bobo; ele já sabe disso... E sabe também que, além da liberdade, ganhou um amigo.