segunda-feira, 30 de novembro de 2009

Zizinho - Ao Mestre com Carinho


A campanha no Brasileiro não engrenava de jeito nenhum. O Flamengo alternava jogos ruins com outros ainda piores. A verdade é que, tal como o próprio time, a torcida do Mengo nunca assimilou muito bem a fórmula dos pontos corridos. A Magnética gosta de embates épicos e sofridos, daqueles difíceis de esquecer, para depois poder contar aos filhos e netos, “eu fui!”.

A próxima partida era contra o Grêmio; adversário sempre tinhoso, duro de ganhar. Mas o jogo era no Maracanã, onde o Mengo tem de vencer; obrigação moral, venha jogando bem ou mal. Àquele momento, dos últimos 18 pontos disputados no campeonato, o Fla ganhara apenas 5!

A torcida era toda rubro-negra, e naquele final de tarde, num modorrento sábado de inverno, não mais que 20 mil gatos pingados resolveram dar as caras – um número raquítico, quando se fala na maior torcida do mundo. Gremistas, só uma meia-dúzia de 3 ou 4.

Eu já havia estado no Maracanã anteriormente, mas em partidas decisivas, e sempre contra times do próprio Rio de Janeiro. Mesmo quando tomamos de 5x1 do Asco da Gama, na final da Guanabara de 1999, a experiência fora enriquecida pela rivalidade e pelo colorido das duas torcidas, que cantaram antes, durante e após a peleja, dentro e fora do estádio.

Deste feita, porém, num cenário bem diferente, a esperança era a de que o time se incumbisse de tomar as iniciativas dentro de campo, proporcionando alguma felicidade àquele tão descrente torcedor rubro-negro.

O público estava concentrado no “setor verde”, tradicionalmente ocupado pela Raça Rubro-Negra, maior torcida organizada do Brasil. Ainda que muitos cantos houvessem sido entoados no início da partida, a verdade é que o clima não era de muita festa e o time não acertava nada. À medida que a torcida chiava, mais nossos heróis se desconcentravam, errando passes fáceis ou perdendo gols certos.

Já quando os jogadores voltaram para o segundo tempo, os gritos de estímulo deram lugar a vaias, e depois, a xingamentos contundentes. Os únicos a festejar estavam concentrados numa minúscula área, do outro lado do estádio: eram os tais 3 ou 4 gremistas que, a cada contra-ataque do tricolor gaúcho, tiravam o maior sarro da galera do urubu.

A tarde havia se acabado, e também a nossa paciência. O céu ficou escuro ao mesmo tempo em que uma chuvinha malvada começou a cair sobre nós. Estávamos coletivamente emputecidos!

De repente, um jogador do Grêmio faz falta violenta e é expulso. O fato só piora as coisas pro Mengo, pois a torcida passou a pressionar ainda mais, deixando os jogadores ainda mais atarantados. Aproveitando-se dos ânimos acirrados, os gremistas quase marcaram em dois rápidos contra-ataques, aumentando exponencialmente a ira da galera.

Para piorar, Obina - o Anjo Negro, nosso maior xodó - se joga na área na desesperada tentativa de cavar um pênalti. Resultado: tomou o segundo cartão amarelo e também foi expulso. A torcida enlouqueceu.

Não há pior decepção que aquela alimentada pelo álcool. Eu já havia entornado uns 5 copaços de celveja, sem contar as que foram digeridas antes do pleito. A cada chute mal dado, vinha lá de dentro um arroto cada vez mais azedo, amargo e indigesto. Tinha vontade de invadir o campo e mostrar àquela corja como se chuta uma bola com respeito e carinho, à La Pet, Zico ou Zizinho.

Num momento assim, quando se cria uma sinergia entre os presentes, é comum se virar para o torcedor ao lado e conversar com ele como se da família fosse. É como um grande salão de beleza, com a diferença que o único assunto é a alegria (ou ódio) que se sente. Só não dá para ficar calado. É num momento assim que até a raiva aproxima os homens.

E naquele momento, já com os 45 minutos findados, o ódio fazia de nós bestas raivosas, irmanadas por um processo de sofrimento coletivo que, ao fim e ao cabo, era justificado pela paixão comum a todos nós. Nos sentíamos traídos pela mesma e deliciosa namorada.

E de repente – não mais que de repente -, já nos acréscimos, um lançamento é feito; o goleiro se antecipa ao atacante flamenguista e dá um chutão... E “fura” espetacularmente, deixando a bola rolar, macia, até os pés de “Renato Pelé”, que só tem o trabalho de empurrá-la para o fundo do filó... BUM! Explode o Maracanã!...

A turba, ensandecida, agora é só sorrisos e urros de prazer! A namorada voltou; linda, com carinha de arrependida! A massa se envolve, se abraça e chora, aliviada, extasiada. O que era dor virou pó; o que era amor, só...

Saímos, eu e meus novos 19.999 novos amigos, enlouquecidos pelas galerias do Maraca, num turbilhão afetivo sem precedentes.

Eu, que já segurava o pinto há mais de meia-hora, corri ao banheiro para me aliviar. Segurei o copo com os dentes e, com a cabeça encostada no azulejo, senti o inigualável prazer do mijo contido que finalmente encontrava a porta de acesso aos céus. Sim, o mictório do Maraca era meu céu, e ao meu lado, outros anjinhos, também com a cabeça lhes servindo de apoio, também com o copo entre os dentes, acompanhavam, com grunhidos nasais, o mantra que ainda ecoava das arquibancadas, transmitindo a todos a deliciosa sensação do Paraíso: “Ô,ô,ô,ô,ô – ô ô,ô,ô,ô,ô – ô, que torcida é essa?”

Se num campeonato onde o Flamengo não tinha chance de nada, uma vitória safada foi assim comemorada, não quero nem saber o que será de mim no próximo domingo, contra o mesmo Grêmio, numa final de campeonato... Obrigado, Senhor!!!

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

A Maior Torcida do Mundo

É domingo, e as expectativas são as melhores...

Já ouvi alguém dizer que o melhor mesmo é não ter expectativas, pois tanto maiores serão as decepções. Acho esse papo coisa de gente amargurada; puro cinismo existencial – coisa de quem tem medo da felicidade e do mundo real.

É domingo! É dia para se acordar ao lado de quem se quer. De café gostoso. De banho de cachoeira. De almoçar camarão (e ficar com a pança cheia). De correr pela grama e brincar no Festival de Cultura Brasileira. De beber e ficar doidão para assistir o jogo do Mengão (que, sim, será hexacampeão)! Enfim, é domingo!

Logo cedo, antes mesmo do desjejum, o primeiro entrave surge do chão. Era uma ave – um sabiá – que apareceu por lá. Debatia-se por nada, e não aparentava qualquer dano. Mesmo assim, foi levada ao veterinário para ser analisada. “-É um sabiá; uma fêmea”, revela a roliça atendente. Ficamos na expectativa de que melhorasse, já nos despedindo, retomando o itinerário preparado para aquele domingo.

Na padaria, a mesa. O pedido. O jornal. Perco preciosos minutos tentando localizar a página que me interessa. Mas falta o caderno de esportes – logo o caderno de esportes! Reclamo ao dono, que prontamente “rouba” o suplemento do próximo jornal e me entrega. Algum leitor ficará sem saber dos esportes.

Volto à mesa com o suplemento roubado e dois yakultes que peguei no refrigerador. A nova mania é tomar Yakult. Mas a validade está vencida. Os lactobacilos vivos já haviam morrido há uma semana... Reclamo novamente ao dono, e ele diz que logo trocará os yakultes. Enquanto isso não ocorre, os desavisados que tomem o mórbido coquetel. Começo a duvidar da lisura daquele comerciante.

Quando o pedido chega, já não há tempo para ler o jornal. A falta de sintonia entre meu ritual e o mundo real me deixa um pouco incomodado. Mas a garçonete não tem culpa. Ela apenas está cobrindo a folga da titular. Falta-lhe traquejo, como a todo reserva.

Mas ainda é domingo; ainda é dia. Dia quente, perfeito para um mergulho nas frescas águas de uma cachoeira. E é lá que vai dar nossa trilha...

Mas alguma coisa aconteceu. Pela força das águas, as pedras rolaram e, se não criaram limo, preencheram boa parte do córrego urubulino. O “poção” virou um frustrante “banheirão”. Passo a mão pelo fundo e recolho algumas amostras. Penso em sabotagem, mas parece que foi trabalho da mãe natureza, terra nostra. Tenho de me resignar. É domingo.

Voltamos ao lar. Tempo para amar.

O relaxamento. O sorriso nos lábios. Os corpos deitados, arejados.

O banho renovador. A roupa leve. A fome bem vinda, frutificada pelo amor.

No restaurante não houve surpresas. Aprendemos a dosar a casquinha de caranguejo, a cerveja, o camarão e, por fim, o beijo. Tudo na dose que tinha de ser. As expectativas voltam a crescer. A tarde se enseja. É domingo.

Plenamente satisfeitos, abandonamos os planos originais e buscamos novamente o acolhimento perfeito. Da casa. Do sofá. Do ventilador. Da vodca com guaraná.

Ela, que nem sabia muito o que era futebol, agora adora, e me assiste enquanto eu assisto ao jogo (que nem era nosso, mas do Botafogo!). E diz que eu poderia ser juiz, comentarista ou até jogador.

Um gole. Um gol. Mais goles. Mais gols! Surpresa no Engenhão: Fogão volta a ser Fuderosão! Era uma expectativa que eu nem tinha, mas que me fez correr à janela e, como nos velhos tempos, urrar grosserias ao time derrotado: que la chupen os são-paulinos de plantão! Afinal, é domingo!

Ao cair da tarde tudo estava pronto para que o tão temido fim de domingo se transformasse num irretocável dia lindo. Seria o momento em que todas as agremiações sentiriam uma saudável inveja do que é ser rubro-negro, vendo a alegria - o júbilo! – do mais popular torcedor brasileiro.

Quando o time do Flamengo surgiu na boca do túnel, pisando o sagrado gramado do Maracanã, os 85 mil presentes fazem surgir um monumental mosaico, trazendo uma acachapante mensagem: A MAIOR TORCIDA DO MUNDO FAZ A DIFERENÇA.

Até mesmo os rivais gostariam de ter visto o que teria sido da noite de ontem se os jogadores do Mengo houvessem feito a devida leitura daquela mensagem, suprindo as expectativas de uma Nação que, há 17 anos, não sabe o que é ser campeão brasileiro. Mas não foi bem assim.

A festa ainda é dos outros.

Aos que, por ora, zombam da minha desgraça e também da dor alheia, deixo-lhes, com um sorriso amarelo, um recado singelo:

“Quem me vê sempre parado, distante garante que eu não sei sambar





Tô me guardando pra quando o carnaval chegar




Eu tô só vendo, sabendo, sentindo, escutando e não posso falar




Tô me guardando pra quando o carnaval chegar




Eu vejo as pernas de louça da moça que passa e não posso pegar




Tô me guardando pra quando o carnaval chegar




Há quanto tempo desejo seu beijo molhado de maracujá




Tô me guardando pra quando o carnaval chegar




E quem me ofende, humilhando, pisando, pensando que eu vou aturar




Tô me guardando pra quando o carnaval chegar




E quem me vê apanhando da vida duvida que eu vá revidar




Tô me guardando pra quando o carnaval chegar




Eu vejo a barra do dia surgindo, pedindo pra gente cantar




Tô me guardando pra quando o carnaval chegar




Eu tenho tanta alegria, adiada, abafada, quem dera gritar”

(Chico Buarque)




No dia 6 de dezembro, estarei lá, junto aos meus, numa festa tamanha que quarta-feira de cinzas nenhuma porá fim. Estão todos convidados.

sexta-feira, 20 de novembro de 2009

Dia Nacional da Consciência dos Branquelinhos da Bunda de Geléia


Um desses almofadinhas moralistas que preenchem as manhãs televisivas deste país abre seu programa anunciando que hoje é o Dia Nacional da Consciência Negra, mas avisa que não vai nem falar sobre racismo. Segundo ele, é a mesma coisa que falar de burrice; "nem vale a pena".

Para quem não sofre na pele o preconceito de pele é relativamente fácil dizer uma asneira assim.

Fiquei pensando se toda a gente preta do estúdio onde ele trabalha passasse a tratá-lo por aquele ”Branquelinho da Bunda de Geléia“; aposto que sua noção entre racismo e burrice ganharia novos contornos.

O racismo é fruto da ignorância e do preconceito disseminados, sistematica e triunfalmente, ao longo dos séculos.

Não se trata de uma patologia da pele alheia, mas da própria alma. Desenvolver a consciência sobre essa condição não é tarefa das mais fáceis. Implica em algo muito mais além do simples discernimento entre o certo e o errado, mas numa revisão crítica da nossa própria essência, reformulando profundamente a visão que temos de nós mesmo e do outro.

Não faz muito, num tempo em que eu já era nascido, um desses branquelinhos da bunda de geléia (e que se auto-intitulava Presidente da África do Sul), defendeu o apartheid pronunciando um irretocável sofisma: - "Diferenças existem e devem ser respeitadas! Por isso é que defendemos que os brancos devem continuar a serem tratados como brancos e os negros como negros - que é o que são." Nesse tempo, Nelson Mandela já se encontrava preso numa ilha, condenado à prisão perpétua, enquanto a comunidade internacional se calava - exatamente como o branquelinho mudo da TV.

Sobre Mandela, aliás, reconheço que sabia muito pouco. Não imaginava, por exemplo, que ele fora um brilhante advogado ou um ativo praticante do boxe, e também que era alto, forte e bonito, sendo admirado por todos, à exceção (claro!) dos branquelinhos, que temiam o negão, de quase se cagarem nas calças. Mandela os olhava nos olhos.

Certa vez, foi ao tribunal como advogado de defesa de um rapaz preto acusado de estuprar uma jovem branca. O juízes, promotores e advogados de bunda de geléia não toleravam o olhar altivo de Mandela, e era esperada uma condenação exemplar. Com o efeito, a missão de Nelsinho era inglória: Como travar um debate justo com uma gente eivada de preconceito e orgulhosa do racismo que exibiam como bandeira?

Contrariando as normas de então, solicitou a presença da vítima para que pudesse, ele mesmo, inquiri-la sobre o ocorrido! Não obstante tal "infâmia", o tenaz advogado aproximou-se da pobre moça e, em tom claro, para que todos os presentes pudessem escutar, perguntou-lhe em que condições havia se dado o estupro, e em que momento se dera a penetração. A jovem entrou em pânico.

Afinal, como revelar detalhes tão sórdidos em frente a todos seus familiares e membros de sua casta? Como admitir um ato tão vil e nojento, se somente a idéia de haver sido penetrada por um homem de cor lhe era de tal modo repugnante que faria, dela mesma, uma mulher para sempre condenada moral e fisicamente por sua própria gente?

Por fim, ela negou veementemente a possibilidade de haver sido violentada, pondo fim ao julgamento e dando a liberdade a um criminoso. O desejo de vingança sucumbiu ao ódio que ela mesma carregava em seu DNA. O preconceito dela fora maior que o próprio trauma emocional e da dor que certamente a acompanharia pelo resto da vida.

Mandela, tal como Gandhi, João Cândido ou Zumbi dos Palmares são exemplos lapidais de uma gente que, mesmo sob o tacão da violência, do preconceito e do racismo, ofereceram a inteligência como instrumento de resistência e liberdade.

Ter uma bunda de geléia não é uma escolha nossa; preservar sua cabeça cheia de cocô é. Um dia aprenderemos.

quinta-feira, 12 de novembro de 2009

Solicitação de Reintegração

Se me perguntarem, “Acreditas nos sentimentos humanos?”, responderei que sim.

Não gosto de normas ou padrões sociais de conduta. Acho-os empobrecedores no tocante à natureza humana, tal qual a concebo; sensual, criativa, libertária! Normas e padrões geralmente são o contrário, tendendo a nivelar tudo ali, pela altura da sola do sapato.

Sou afeito à subjetividade humana posta em forma de improviso, espirituosidade e, principalmente, graça. É desse espaço emocional que precisamos para escapar à mediocridade imposta. É o espaço ideal para a comunicação real, direta, despojada de arroubos civilizatórios que tanto nos limitam e oprimem, normatizando e padronizando nossa existência.

A quebra desse tipo de paradigma está - como tudo nessa vida - na mente de cada indivíduo. Quando desativamos esse sistema dentro de nós, estimulamos o outro a fazer o mesmo, desencadeando uma onda de anarquismo existencial em cadeia.

(...)

Não sei quantas vezes já havia sido desligado ou jubilado da Universidade de Brasília, mas sempre soube que, para o primeiro caso, cabia recurso.

As justificativas sempre eram as mais variadas possíveis, mas se concentravam na figura daquele que era, além de aluno, arrimo de família. Eu mesmo utilizei esse estratagema em minha “estréia”, só porque pagava a conta do condomínio e da luz lá de casa.

Mas a partir da terceira ou quarta vez que a instituição “te desliga”, os argumentos vão se escasseando. Era, pois, esta a minha preocupação quando abri a correspondência da UnB, delicadamente enviada por correio ordinário – o que parecia combinar com um aluno igualmente ordinário.

Se bem tivesse um emprego extenuante, sem hora para começar ou terminar, minhas mãos se recusavam a preencher a solicitação de reintegração com essa argumentação. O motivo? Eu estava apaixonado – platonicamente apaixonado...

Por quase todo um ano não pensei em outra mulher que não nela. Não sentia tanta alegria com um gol do meu time quanto a que sentia ao pronunciar o nome dela. Por quase todo o ano, aliás, não pensei em outra coisa que não nessa mulher. Estudos, trabalhos, todo o resto era resto; minha vida era gasta em pensamentos e esperanças pouco realizáveis. Não que me faltasse vontade, mas a tontinha era refém de um namorado dominador...

Isso tudo escrevi no documento solicitado pela universidade, e entreguei-o, ferido pela paixão não correspondida, mas romanticamente vingado pela nobreza do meu ato. Ali estava a minha verdade.

Algum tempo se passou desde então, até que recebi um telefonema do Departamento de Atendimento ao Aluno. Do outro lado da linha, uma senhora quis confirmar o que acabara de ler: “–O senhor escreveu aqui que... Que estava apaixonado; é isso mesmo?” Diante da minha confirmação, fui convidado para uma entrevista.

Na data marcada, fui recebido em uma sala onde, além da senhora que me convidara, estavam quatro outras moças, aparentemente à toa. Revelaram um ar de expectativa tão logo me apresentei. “–É ele!...”, cochichou uma delas às amigas.

Levantei a sobrancelha, como se não tivesse escutado, e me sentei. A entrevistadora trazia uma pasta com minha documentação, histórico acadêmico e etc, mas retirou apenas a ficha de solicitação de reintegração. Olhou para o papel e para mim, como se pudesse (ou quisesse) conferir a autenticidade do documento, associando-o à minha sorridente pessoa.

- Você escreveu aqui que... Hum... Você trabalha?
- Trabalho. -, respondi.
- Sei, sei... Mas aqui não está escrito que você trabalha...
- Pois é...

Outras duas moças entraram na sala, juntando-se às outras, que acompanhavam tudo em silêncio absoluto. A entrevistadora continuou:

- Mas por que, então, não mencionou que o trabalho poderia estar atrapalhando sua vida acadêmica? Não seria o caso?
- Seria uma mentira.
- ?... Mas não é verdade? Por que, então, seria mentira?
- Por que nem do trabalho eu estava dando conta...
- Não? E por quê?

Olhei para as moças e disse, após uma pausa cafajestosa: “Por que eu estava apaixonado, e quando me apaixono, o mundo não existe para mim...”

Ouviu-se um suspiro coletivo na sala.

Na semana seguinte, recebi a confirmação do meu pedido.

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

O Futuro do País a Nós Pertence


Sentado à mesa da engordurada lanchonete, Horácio Augusto, funcionário público relapso e de rechonchuda forma, delicia-se comendo um "Xis-Tudo", pouco se importando com o molho rosé que a gula faz respingar na camisa.

Bem atento ao bacon, Horácio não percebe a aproximação de um menino sujo e esfarrapado que, coçando o braço, se dirige a ele.

- Com licença, tio... O senhor poderia me comprar um sorvete como aquele ali? - diz a criança, apontando para a desgastada foto de um suntuoso sundae, pendurada na parede da bodega.

Incomodado, tanto pela presença inoportuna do pirralho como pelo seu aspecto desagradável, Horácio lhe direciona um olhar de reprovação. Constrangido, o garoto se afasta, e logo o comilão volta sua atenção ao volumoso sanduíche.

A nova mordida, porém, não teve o mesmo impacto prazeroso que as anteriores. Por instinto, Horácio virou a cabeça em busca do menino, mas não o viu. E sentiu um inusitado incômodo dentro de si por não havê-lo ajudado.

Não era, na verdade, propriamente uma ajuda; e talvez fosse bem mais que isso. Era, senão, a satisfação de um desejo! Fosse uma mera ajuda, pensava, ele haveria pedido dinheiro, e não sorvete. E eu não o ajudei... Quer dizer, não tive vontade de satisfazer seu desejo... Que merda...

Esse raciocínio o incomodou ainda mais. Sentiu-se mesquinho, avarento.

Lembrou de quando era criança, e de como eram saborosamente apreciados os momentos em que podia comer seus doces prediletos. De quando economizava suadas moedas para ir à padaria, onde comprava pirulitos de chiclete, picolés e chocolates, e de como se escondia para não ter de dividi-los com mais ninguém...

Lembrou de como se esgueirava pelos bambuzais, próximo à sua casa, embrenhando-se em seu interior, dando numa clareira natural. E lá, encontrava papelões sobre os quais se deitava, ficando protegido da palha e de seus pelinhos piniquentos. Enquanto se lambuzava com as guloseimas, lia as revistinhas em quadrinhos que ele mesmo escondia por ali, ao passo que era, inconscientemente, adormecido pelo ranger dos bambus e pelo hipnotizante baile de suas copas, balançando ao vento...

Eram instantes mágicos, em que usufruía de total autonomia, desfrutando de “sua” comida, “suas” revistinhas, “seu” espaço; seu tempo, enfim. Lembrou-se de como aquilo lhe dava autoconfiança, empregando à sua volta ao lar uma atmosfera ímpar de reafirmação e construção de sua própria personalidade. E pensou em como teria sido ruim se, em seu mundo infantil, não pudesse nunca ter tido aquele tempo, quando era rei de si mesmo, em como sua vida teria sido mais sem graça e vazia. Por fim, sentiu-se responsável pelo futuro daquela criança suja e miserável.

Com o olhar no vazio, Lembrou-se, da figura que há pouco lhe importunara; dos grandes olhos assustados, do cabelo desgrenhado e da cara suja do menino. E também da camisa frouxa e rasgada, caída pelo ombro, em contraste às palavras delicadas e respeitosas que o garoto utilizou, tendo pedido “licença” e o chamado de “senhor”. Isso o fez sentir-se um desgraçado, pois se tratava obviamente de uma alma pura, e que, se não fosse bem tratada, poderia logo descambar para a vida bandida, tornar-se um pivete, depois marginal!...

À sua volta, alheios à sua angustia, outros clientes comiam, tranquilamente - exatamente como Horácio fazia há poucos minutos. “E ninguém se importa; ninguém dá a mínima!!!... – pensou, indignado. Subitamente, num misto de culpa e benevolência, levantou-se, comprou um enorme sundae de chocolate com caramelo e saiu em busca do menino, porta afora, em direção ao estacionamento.

Nada... Apenas o sol escaldante das duas horas da tarde de um abafado dia de verão. Olhou para um lado e para o outro. Caminhou por entre os carros. Andava como se estivesse sem rumo. Um outro quase o atropela, mas ele ignora, parecendo estar mais preocupado em encontrar o pirralho.

O sundae, derretendo ao sol, começa a escorrer pelas mãos de Horácio; depois pelos braços. Enquanto isso, ele, cada vez mais desesperado, já pensa no pior, e imagina o menino metido num buraco, cheirando cola, fumando crack, a ponto de perder a infância - e tudo por sua culpa, por sua falta de compaixão!!!

Desnorteado, tropeça na calçada; quase cai. Troca o sundae de mãos, limpa o suor da testa, melecando-a de sorvete. Passa a mão na calça, sujando-a também. E pergunta aos transeuntes pelo garoto: - “Não viram uma criança com cara de bom menino?”, indaga aos que passam, sem nem resposta esperar.

Dá toda uma volta no quarteirão e então, começa a sentir cansaço. Esbaforido, recosta-se numa mureta, todo suado e sujo de sorvete, lembrando que já passa da hora de voltar ao trabalho. Mas está ali, todo melado, com aquele pote de sorvete semi-derretido escorregando em sua mão, sem saber o que fazer com ele.

E então, prestes a desistir, já numa última olhada, percebe a presença do moleque, imiscuído entre dois arbustos, com a cabeça entre os joelhos e o olhar fixo no chão – escondido como ele mesmo gostava de fazer.

- Ê! Ô, rapaz! Te procurei por todo o quarteirão! - exclama Horácio, refazendo-se do cansaço e limpando o resto de caramelo que restava em sua testa. O menino levanta a cabeça e olha, desconfiado.

-Eu?

- É claro! Você não quer o sorvete? - diz, oferecendo-lhe aquele caldo doce e derretido.

A criança estica as mãos. Horácio hesita um pouco por conta da sujeira que elas trazem, mas entrega o copo, sorridente. E pergunta pelo seu nome: “Wanderson.” – responde.

- Tome aqui, Wanderson; é de caramelo!... Você gosta?
-Gosto sim... Obrigado – diz, timidamente.
- É, deve ser muito bom mesmo... Mas não vá fazer coisas erradas por aí, certo?...
-Coisa errada?!.. Não, não... – diz ele, jogando instintivamente um pedaço de plástico no chão, sem ao menos tirar os olhos do copo de sorvete.
O gesto, no entanto, causa surpresa em Horácio que, para espanto de Wanderson, solta um berro: “No chão não!!! Tem que jogar no lixo, como é o certo! Tem que fazer sempre o certo, viu?", ensina, afastando-se do moleque.


Enquanto Horácio Augusto caminha, vai refletindo sobre a boa ação que julgara realizar, e filosofa sobre sua "fantástica" atitude - como se ela representasse o início de um momento histórico para sociedade brasileira. Por fim, deixa arrebatar-se: “Muito bem, muito bem!... É imprescindível que haja pessoas a preocupar-se em educar as crianças deste País!..." , e, lambendo os dedos, conclui: - "O que seria de nós se não fosse por gente assim, como eu?!...”.

segunda-feira, 2 de novembro de 2009

Dois de Novembro




"O importante não é saber o que fazer com

o destino, mas saber o que fazer com

o que o destino fez com você."


(Sartre)




Há pessoas que carregam a pecha de amargas durante toda sua vida. Parecem não se incomodar, apostando sempre na manutenção de uma dor injusta, relutando a se rebelarem contra o dissabor que lhes foi servido à mesa do destino.

Por trás de um comportamento azedo há sempre um nó emocional – daqueles bem dados, como em cadarço molhado. A falta da atenção materna ou o excesso da violência paterna são evidências fortes, mas o que parece tirar de vez o açúcar da vida é o Amor rejeitado.

Moema, minha avó, teve uma vida assim, marcada pela falta de atenção, de carinho e de amor; uma mistura cítrica.

Mas o que fez sua alquimia afetiva se tornar ácida foi o tempero do abandono, que a deixou viúva em vida; primeiro, dos pais, depois, do marido, com cinco crias a tira-colo.

Apostava, em seu íntimo, que a Justiça Divina haveria de retocar-lhe o tropeço, devolvendo-lhe o homem amado e a alegria de uma família modelo. Enquanto isso não ocorria, contudo, relutava em debelar-se do pranto.

Apesar dos bonitos olhos azuis, seu rosto era triste, dum conformismo opaco e mal disfarçado, tão comumente visto nos semblantes divorciados da felicidade. E mesmo com alguma boa intenção, demonstrada pelos confortáveis coletes de lã feitos em crochê, sempre havia razão para acreditar que ela estava insatisfeita, pois reclamava de tudo, de todos.

Lembro à perfeição quando, numa tarde, passou por nós, seus netos, enquanto almoçávamos num restaurante próximo à sua casa. Assustada com “todas aquelas crianças agitadas” e sem naturalidade para beijos ou abraços, deixou rapidamente o local, pensando alto: “São uns selvagens!”. Meu pai demorou anos para digerir esse desconforto.

Foi uma expressão infeliz e forte que ficou marcada no meu inconsciente, afastando minha avozinha do meu convívio por muitos anos. Felizmente, com o tempo, isso começou a mudar.

Como das relações humanas o mínimo a se esperar é tudo, pude, já “hômi feito”, reinterpretar as marcas em seu rosto. Passei a visitá-la semanalmente, e a cada encontro, uma expressão de leveza, ainda que tênue, surgia em sua face. Já aceitava o carinho do meu sorriso e o calor do meu abraço. Ela me preparava chá e bolo, como só as avós fazem. E me servia em xícara de porcelana nobre, com motivos orientais em alto relevo e colherinha de prata. Ao final, exclusivamente para me agradar, dava-me sorvete de abacaxi.

Quando estava inspirada, falava da inteligência dos filhos ou de curiosidades da família e de sua própria vida. Chegou a fazer um Mestrado em Sociologia, na Cidade do México. E trabalhou na Fundação Nacional do Índio.

Todas as abordagens que fazia sobre a vida, porém, não iam além do próprio desejo não atendido: família e estabilidade. Dizia que eu deveria “fazer tudo certinho”, “não criar confusão” e “estudar muito”. Mas sempre me chamava pelo nome de um dos meus irmãos, e freqüentemente fazia alusão a experiências que também não eram minhas – chegando a ser, muitas vezes, dos meus tios!

Certa vez, quando me contava sobre o longo caminho que teve de percorrer para comprar aquele pote de sorvete, algo muito surpreendente aconteceu. Mal ela acabara de dar desfecho ao relato, quando me perguntou se eu queria mais. Como recusar oferta de avó pode render alguma maldição, aceitei. Ela então foi à cozinha, e assim que retornou, começou a me contar sobre o longo caminho que teve de percorrer para comprar aquele pote de sorvete... Do mesmo jeito, com todas as ênfases e entonações há poucos minutos utilizadas. Fiquei sem fala. A partir daquele fato, tive a certeza de que nossa relação ficaria, no mínimo, algo psicodélico.

Mas não houve como saber. Devido a recomendações médicas, Moema se mudou dali a poucos dias para usufruir os ares de uma cidade litorânea. Passou os últimos anos de sua vida em Salvador.

Voltou a Brasília quando, após uma queda, bateu a cabeça no chão e precisou receber tratamento adequado. Assim que ela chegou, fui visitá-la. Estava paralisada por um derrame e nada falava. Mesmo assim, trocamos sentimentos. Pude olhar em seus olhos, ainda azuis – e agora mais brilhantes – que ela não estava mais triste, que não guardava mágoas e que não trazia mais, enfim, a dor do rancor.

Dois dias depois, morreu. Não fui ao seu enterro.

No Dois de Novembro, quando entes perdidos são enaltecidos, penso em minha Vó Moema e não me sinto triste. Tampouco tenho vontade de ir ao cemitério.

Não sinto que uma visita seja significativa dentro do contexto em que construí minha relação com ela. Prefiro investir nas boas lembranças, como na satisfação de pensar que ela, ao fim da vida, já sabia o quanto era doce o viver.
.
"Somente o tempo, o tempo só
Dirá se irei luz ou permanecerei pó
Se encontrarei Deus ou permanecerei só
Se ainda hei de abraçar minha vó"

(Gil, em versão de letra de Robert Nesta Marley)