quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Um Luar Desbundante

Ao contrário de seus amigos de então, Caetano sempre foi um adolescente desapegado aos vícios mais comuns da sua geração.

Não demonstrava interesse em ir a shows de rock ou a boates da moda. Não via graça nenhuma na mesa de um bar, e muito menos em passar o tempo falando sobre carros e motores. Salvo alguns goles de Biotônico Fontoura, não havia posto, até então, qualquer substância alcoólica em sua boca.

Para não ser de todo diferente, deve-se registrar que pensava sempre em sexo – o que, em linhas gerais, fazia dele um típico adolescente.

Costumava ficar recolhido em seu quarto, perdido em devaneios que registrava poeticamente em seu diário, e pouco saía; nem mesmo nos finais de semana. A verdade é que chegou a se divertir muito mais aos doze, treze anos quando ainda era meio menino, do que aos dezoito, quando a aproximação junto às mulheres já não se dava de forma tão espontânea, dado que se sentia ainda um meio homem. E tímido. Passava o tempo tentando entender como se aproximaria delas indo dormir tão cedo...

Naquela noite, após registrar ardentes desejos em seu diário, Caetano olhou para a janela e tentou compreender a excitação de uma sexta-feira. A chuva fina que caíra durante a tarde deixara poças d’água pelo asfalto, multiplicando o cintilar e as cores das luzes da noite. Em frente à sua janela havia um posto de gasolina, onde se situava também uma loja de produtos de conveniência.

Eram quase 10hs e o movimento de carros era intenso. Na linha do horizonte, a borda amarela da lua cheia se pronunciava. Observou garotões excitados e moças que falavam sem parar. Enquanto eles se empurravam pelo estacionamento e compravam bebida, elas permaneciam no carro, entre fofocas, risos e gritinhos.

Mas não se identificava em nada com eles. Da janela, ele esticava a vista, talvez na esperança de que uma delas percebesse sua presença, e por ele largasse toda aquela “vida bandida”... Mas por mais que tivesse brilho no olhar, Caetano se colocava muito distante da realidade para poder iluminá-la.

Não se sabe, porém, se pelas influências da lua ou se por motivos outros, fato é que Caetano sentiu, naquele momento, uma agitação incomum. No dia seguinte, teria de acordar cedo para ir treinar... Mesmo assim, ousou!

Meteu-se numas calças folgadas e tirou do armário uma camisa bem confortável. Contra o frio, um casaco bem quentinho. E saiu à rua.

Em frente à porta de casa, decidiu o itinerário; nada mais simples: iria caminhando até encontrar uma rua bem movimentada. Daria uma pernada e voltaria, bastando para saciar suas vontades e suas carências – ao menos nas aparências.

Antes, deu uma rápida passada pelo posto, onde comprou comprou um litro de iogurte de pêssego. E pôs-se a caminhar.

A noite estava realmente interessante! Fresca, calma, insinuante. Nada como a brisa quando se tem calor guardado dentro do peito. Os passos eram dados sem pressa, procurando cada graveto ou superfície que pudesse produzir um ruído novo. E o iogurte, então, descia como goladas de scotch, dando a ele a sensação de ser um poeta perdido madrugada afora. Buscava o glamour das meias-luzes dos postes e falava sozinho, como se acreditasse que Deus o estivesse guardando, escutando a cada cochicho.

Ao chegar, deparou-se com uma avenida tomada por habitantes da alcova.

Por entre roqueiros, artistas, cabeludos e muitas latas de cerveja, avistou Regina, colega de escola.

De traços finos e sobrancelhas sinuosas, era uma linda mulata. A beleza fora roubada da mãe, que chegou a ser eleita Miss Mato Grosso em tempos idos; a sensualidade, herança dos subúrbios e das praias do Rio de Janeiro, onde nasceu o pai.

E não era só isso: Regina, além de linda e exageradamente sensual, guardava, há mais de ano, uma grande paixão por Caetano. Paixão não correspondida que, recolhida, ainda lhe doía no fundo do peito.

Quando se conheceram, ele tinha namorada e lhe era fiel. Agora, sem razão para retidões, Caetano era somente impulso.

Regina estava sentada na calçada, cabisbaixa, alheia ao caos que imperava ao seu redor. Ele, apesar de atraído, não encontrara, ainda, meios para corresponder aos sentimentos dela. Aproximou-se.

- Regina?... -, disse, tocando o ombro da moça, que parecia enxugar algumas lágrimas. Ele insistiu: - O que tá fazendo aí?
- Tô sentada...
- Sim, mas... Mas, aí?!
- É.
- (...) Parece que tá meio sujo, esse chão...
- É, parece.

O ambiente estava carregado, mas mesmo sentada no chão, Regina não pertencia àquele local. Ele, pouco afeito a toda aquela agitação, resolveu arriscar e convidou-a para “uma caminhada”. Sem nada dizer, ela se levantou e seguiu Caetano.

Enquanto caminhavam, Regina não falou – e nem iogurte aceitou. Caetano procurava palavras certas ou coisas que a pudessem agradar, mas nada a fazia sorrir. De repente, passando exatamente pela frente de sua casa, Caetano, muito maliciosamente, sugeriu: - “Veja, Regina, é aqui que eu moro...”, e sem pensar muito, arrebatou, - “Quer subir?”. Regina o fitou por alguns segundos e novamente acatou a idéia do amigo. Não falou qualquer “porém”, o que o deixou apreensivo, e também esperançoso.

Todos os devaneios que imaginou da janela apequenaram-se diante daquela situação. O que há poucos instantes lhe parecia tão inalcançável mostrava-se, agora, uma tangível realidade.

Enquanto subiam a escada, trocaram olhares, mas nenhuma palavra. À porta de casa, tranqüilizou-a: -“Não se preocupe; estamos sozinhos...”.

Chegando ao seu quarto, abriu a grande janela, revelando uma lua já majestosa e dona dos céus. Ela, por sua vez, simplesmente se jogou pesadamente sobre a cama. Isso o incomodou: - “Regina, você não pode se deitar com esta calça... Você estava sentada no chão sujo e... -, antes que ele pudesse terminar – e como se aquilo fosse a coisa mais natural do mundo -, Regina se levantou e tirou a calça, deitando-se novamente...

Nem em seus pensamentos mais descarados ele encontraria espaço para um diálogo tão fluido como esse. Regina, com seus 17 anos, não fizera qualquer objeção a tudo o que lhe fora proposto, e estava, agora, deitada em sua cama, com a barriga para baixo, trajando uma singela calcinha branca com rendinhas...

A desavergonhada exposição da bunda majestosa de Regina fez Caetano se sentir totalmente à vontade. A ponto de se esquecer de todas as falas e argumentos que havia ensaiado para momentos como aquele. Regina os fez desnecessários.

Ao olhar para aquele espetáculo, Caetano sentiu o pau se avolumar abruptamente. Pelo vão da janela, o brilho lunar, quase azul, deu um tom fluorescente às rendas da calcinha dela, aumentando o contraste com sua pele morena, lisa e macia, que ele agora tocava suavemente, estimulando-a a exalar o marcante cheiro do sexo...

Ante a total aceitação da parceira, Caetano apressou-se em lançar longe toda a roupa. E logo estava deitado aos pés dela, percorrendo toda a extensão de suas pernas com as mãos... Depois com o nariz... Até tocá-la com os lábios... E a língua... Descobrindo, por baixo da calcinha branca, um sexo pleno, vermelho, que pulsava, latejante...

E então, já totalmente entorpecido de prazer, Caetano pode aprender, pelo toque quente e molhado do corpo de Regina, que havia, afinal - e para além das palavras - formas efetivamente verdadeiras de se comunicar com alguém.

Até hoje, pouco se falam, embora entendam-se à perfeição.

quinta-feira, 22 de outubro de 2009

A Moça dos Pastéis


















A Moça dos Pastéis se arruma para o trabalho.





Ser consultor de finanças de uma multinacional era mera conseqüência de sua introspecção. Aos 25 anos, Igor, moço tímido e de gestos contidos, sempre buscou na exatidão da ciência as respostas para a própria existência e também a satisfação que não dispunha para dar ao próprio coração.

Foi assim, na solitária infância de um filho sem irmãos e, com mais ênfase, na adolescência, quando não fez amigos ou - menos ainda - namoradas.

Não que fosse feio – não era -, mas uma rígida educação religiosa atrelada à insegurança de uma mãe abandonada pelo marido terminou por impingir-lhe à personalidade um forte conservadorismo, e isso o impedia de ir além das recomendações domésticas.

Em casa, nada era feito sem a amarga anuência da mãe. Mesmo quando tomava a atitude correta, não recebia elogios ou reconhecimentos.

O medo de um novo abandono fez com que a mãe o tratasse com aparente desvelo. Mas o carinho cotidiano, Igor não recebia. Nem o toque amoroso. Nem palavras de conforto que lhe fortalecessem o espírito. Ao contrário, a cada dia Igor ia se sentindo menos do que era. E entendeu que, para não ser repreendido, bastava que acatasse as vontades de sua mãe. Tornou-se, por vias tortas, um ser demasiadamente respeitador.

Não tivera um pai em quem se espelhar. A respeito de quem, aliás, sempre escutou as piores coisas, exaustivamente pontuadas por sua magoada mãezinha: – Um mulherengo! Homem sem respeito! Que não sabe o que é a Família!... Um pervertido!... – e completava, olhando para o jovem Igor: Não olhes jamais para mulheres da rua, meu filho; não seja um desgraçado aos olhos de Deus, como foi teu pai.

Para Igor, todas as mulheres que via na rua eram mulheres da rua. E apesar de admirá-las em seu íntimo, não demonstrava qualquer apreço por medo de desgraçar-se.

Do mesmo modo que entrou na faculdade de economia, saiu: com medo da desgraça divina e um crescente pavor da presença feminina. Esperava, aliás, que um dia o Senhor lhe pusesse à frente uma mulher de caráter ilibado e modos corretos. E quando isso ocorresse – estava certo – saberia reconhecê-la.

Por ora, preferia refugiar-se em números, cálculos e fórmulas que, mesmo sem falas ou gestos, eram os únicos a lhe darem alguma satisfação. Escutar primos e amigos relatarem suas experiências amorosas foi deixando de lhe ser excitante, tornando-se cada vez mais angustiante.

Isso, porém, começou a mudar com o novo emprego. Não por conta do ofício, encarado sempre com seriedade e mesmo prazer, mas por conta da moça dos pastéis.

Dela, nunca perguntou nada. Nem ousou trocar olhares. Temia ser mal interpretado; que lhe pensassem coisas vãs, levianas, e mesmo pecaminosas! Mas fazia questão de sair de casa com espaço na barriga reservado para dois pastéis de palmito. Era um momento raro em sua vida, quando se permitia esquecer um pouco da exatidão dos números.

Encolhia-se sempre num canto do balcão, de onde sonhava com essa moça a preparar-lhe pastéis – todos-, podendo fitá-la por horas, sem a necessidade de revelar seus verdadeiros desejos. Mas não ousava sequer pensar na hipótese de um diálogo – Não! Afinal, via-se que, apesar de bela, era “da rua”.

Ainda que fosse discreta – e ela era -, uma moça distinta não usaria aquele tipo de maquiagem. E também aquele cabelo em coque, revelando a desconcertante nudez de sua nuca. Nem saias como aquelas, que lhe deixavam as grossas coxas à mostra. E também as sandálias, sempre de salto, que revelavam o firme torneado de suas panturrilhas e tornozelos. E o olhar? O que dizer daqueles olhos amendoados em verde-claro? Ou daquele rosto, cujas maçãs davam para se comer?... Enfim, não havia dúvidas: era gente da ralé!

Quando ela faltava, já tendo ele comprado as fichas no caixa, revoltava-se, metendo os pastéis num saco para, em seguida, abandoná-los na primeira lixeira. “Só me servem se forem dela”, pensava, resignado.

Na empresa, toda aquela devoção aos números e às tarefas lhe conferiu célere projeção. Era invejado, admirado – até respeitado! -, mas não sabia disso.

E assim, alheio ao mundo, Igor chegou ao trabalho para cumprir apenas meia jornada; era 31 de dezembro.

Naquela manhã, encontrou a moça dos pastéis mais bonita que nunca. Não havia nada de diferente na roupa ou no cabelo, mas seu espírito estava reveladoramente festivo. Atento a tudo, Igor observou-a preparando uma grande jarra de suco. Mas estranhou que não o tivesse servido a ninguém. Instintivamente, deixou escapar:

- É de limão?

Ela então levantou os olhos, fazendo Igor estremecer. Nunca haviam ido além dos pastéis...

- Sim, é de limão... – disse, servindo-lhe no mesmo copo em que bebia. Nervoso, e sem saber o que dizer, Igor entornou o copo inteiro para dentro, o que lhe trouxe a indescritível (e até então por ele desconhecida) sensação do calor alcoólico. –É caipirinha -, revelou ela, sorrindo maliciosamente. E estava agora mais linda do que nunca!

E Igor, mais do que calor, sentiu euforia. A surpresa lhe parecia ter retirado as amarras da alma; queria mais!

Ainda com os olhos lacrimejantes, Igor devolveu-lhe o sorriso, mas antes que pudesse revelar sua felicidade, percebeu a intensa movimentação de funcionários em direção à portaria do edifício. –Deus meu! Estou trabalhando!!!-, pensou. E apressou-se em devolver o copo e desejar-lhe um feliz ano novo, para sair, atabalhoadamente.

-Mais tarde tem mais! -, ainda gritou ela.

Passou toda a manhã em grande conturbação. Não fez cálculos matemáticos, não atualizou qualquer planilha, não produziu, enfim, nada! –Encarnou o espírito do réveillon, Igor? -, observou um colega, insinuando que o respeitável funcionário estivesse com a cabeça nas nuvens. E estava mesmo.

Igor nem respondeu. Estava fascinado como uma criança em seu último dia de aula. Nunca sentira aquilo antes; uma euforia tão genuína, uma alegria tão intensa, somente... Somente por estar vivo! E o melhor é que o sorriso da moça dos pastéis aparecia em todos os seus pensamentos, acariciando-lhe o ego virgem. O olhar que ela lançou sobre ele, então, provocava pontadas logo abaixo do estômago.

Ao meio-dia, a liberdade!

Bateu o ponto antes mesmo que os demais. No caminho, pensava em beber mais um copo de caipirinha, em comer mais uns pastéis para, então, convidar aquela moça para um passeio. Agora, ela já não se parecia mais com uma qualquer. Nada disso. Pensava nela ao seu lado, assistindo à TV, preparando o jantar, cuidando das crianças...

Quando chegou à lanchonete, porém, não a viu. E perguntou por ela:






- Ei, você aí, do caldo de cana! Cadê a moça dos pastéis?!



- A "Peruana"? Encheu a cara e bateu boca com o dono. Foi despedida na hora! Saiu daqui diretim pra rodô!

Perguntou pelo nome e pelo endereço, mas ninguém sabia: - Dizem que veio da Bolívia, e que estava ilegal aqui. Ninguém sabe mais nada. Parece que mora com uma amiga em Águas Lindas...

Por breves segundos, entre a decepção, a raiva e o delírio, Igor pensou em ir atrás dela. Mas como, se não sabia sequer o nome? E onde, se não tinha qualquer referência?

Naquele dia, não voltou para casa. E após as festas de fim de ano, também não retornou ao trabalho. O único que informava alguma coisa era o rapaz do caldo de cana, que diz ter ouvido que Igor agora vende pastéis em Águas Lindas... E vai muito bem.

sexta-feira, 16 de outubro de 2009

Saindo do Armário


Após algumas temporadas perambulando por corredores universitários, fui ficando mais vagabundo e presunçoso. Do tipo de cara que entra em qualquer sala demonstrando intimidade, falando “e aí” para o professor e vai se sentando no melhor lugar.

Gostava de provocar os professores quando estes pareciam querer subestimar a inteligência dos presentes. Consistia numa estratégia que os estimulasse a fazerem colocações menos levianas e coisa e tal; a idéia não era de confrontação. Ainda que de conteúdo político, eu procurava sempre colocar pitadas de humor, o que, não raro, poderia transformar uma aula desinteressante num risadio coletivo.

Bartolomeu foi um desses mestres (aliás, “doutor”) que merecia provocação contínua, tal sua soberba.

Nascido e criado num Rio ainda glamoroso, expressava-se de forma imperial. Com suas bochechas trepidantes, possuía um gestual repleto de pernosticismo e uma fala lenta, algo pedante. Só se referia às grandes empresas como “transnacionais”, como se, num esforço policarpiano, quisesse revelar ao mundo sua “descoberta neolinguística”.

Em sua patente vaidade, julgava-se progressista, daqueles que se referem aos próprios ideais revolucionários da juventude como “características de um tempo”. Em tempos atuais, no entanto, dava-se ao luxo de discutir, durante as aulas, seus whiskeys preferidos e os blends mais renomados: “Só tomo Black Label”, dizia, cheio de orgulho. Tinha cara de pedófilo, daqueles que gostam que as crianças o chamem “tio Bartô”.

Em pouco tempo, "conquistei" aliados. A maioria, informais, que apenas gargalhavam com a galhofa, embora houvesse
quem rompesse o anonimato, revelando também suas discordâncias em relação ao Bartô, ficando este cada vez mais estereotipado. Ganhou logo a alcunha de “senhor do universo”.

Com o passar do semestre, aquela foi se tornando a aula mais atrativa. O número de faltosos diminuiu, tão interessante ficara o ambiente. Quando eu levantava a mão ou coçava o cavanhaque, Bartolomeu se mexia em sua mesa, incomodamente, já a espera do embate.

Notei que ele, apesar de PhD, etecétera e tal, não possuía lá “todo” esse conhecimento, principalmente quando escapulíamos para fora do academicismo. Aí ele se perdia, ficava nervoso, ainda que demonstrasse enorme espontaneidade em abandonar o tema para regozijar-se com suas aventuras no estrangeiro (para além dos prazeres etílicos).

Certa vez, enquanto discutíamos algumas regras internacionais sobre fronteiras em regiões de floresta, nosso mestre entendeu por relatar uma situação de perigo que vivera na selva, anos atrás, acompanhado de um professor colombiano...

- Acompanhado, né? Hum... -, interrompi eu, olhando maliciosamente para a turma.

Bartolomeu fez que não escutou, e seguiu com sua ladainha, dizendo que o avião ficara desorientado, no que ele e seu parceiro se viram obrigados a passar a noite, na selva...

- Na selva... Hummmmmm...

Ele foi ficando vermelho. E a cada detalhe da aventura, bastava que eu fizesse “hum” para que Bartô se perdesse na lógica do relato. A turma divertiu-se a valer, e até Alícia, a monitora que nunca ria e só fazia comentários pertinentes, perdeu o rebolado naquele dia, deixando o mestre sem cobertura moral. Dali em diante, parou de responder às provocações; as classes ficaram mornas.

Apesar das provocações e das piadas, fui aprovado, dando prosseguimento ao meu antropólico périplo pelas fileiras acadêmicas.

Numa dada noite de sexta-feira, numa festinha porralôca, reconheci Alicia, que estava irreconhecível, tão alegremente bêbada se mostrou.

Veio pra cima de mim na maior intimidade, sendo que nunca havia falado comigo. “Joããããão!!!”. E disse que tinha uma coisa inacreditável para me contar.

- Sabe o Bartolomeu?
- Claro! Como esquecer?
- Pois ele tem você engasgado na garganta!... -, disse ela, entornando mais uma golada de wodka, e quase tropeçando na calçada.
- Comigo? Por quê?
- Lembra daquela estória que ele contou, sobre um lance na selva, com um colombiano? Pois então, logo depois daquela aula, ele foi embora e nem passou pelo departamento...
- Sei...
- ...e voltou todo estranho no dia seguinte. A gente tava preparando um material para a próxima aula, no que ele olhou para mim e perguntou “Você acha que tenho cara de homossexual?”!

Eu e Alícia demos uma enorme gargalhada, mas logo fiquei sem fala. Ela então me disse que o pobre Bartô encasquetou com minhas insinuações, e que não parou mais de questioná-las, até o fim do semestre! “Por que o João falou aquilo?”. Será que a turma desconfia de alguma coisa em relação a mim?”, “Você já escutou mais algum comentário?”...

- Mas como é que pode, um cara que se diz tão preparado, viajado e estudado, dar bola pruma brincadeira marota?...

- Pois é -, emendou ela-, eu nunca tinha desconfiado de nada, mas de tanto ele insistir com o assunto, agora tenho certeza! E o mais engraçado é que ele não te esquece! -, disse Alícia, já se perdendo em meio à balbúrdia estudantil.

Títulos, prestígio, livros... Toda uma carreira dedicada à antropologia, aos estudos, à Academia!!! E nada -nada!- fora, no entanto, capaz de fazer Bartolomeu sentir-se à vontade em sua existência.


Quando a verdade fala, o homem cala.


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photografie: joão sassi

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

Gaia Now! - Celebrando o Prêmio Nobel sem Fazer Cara de Pastel


"Que alguém tenha um PHD não significa necessariamente que ele saiba mais que as pessoas que vivem de um recurso. Há muito conhecimento local que temos que respeitar".

Foram estas algumas das palavras expressadas pela cientista social Elinor Ostrom, logo após se agraciada com o Prêmio Nobel de Economia deste ano.

Houve um tempo – um tempo não muito distante dos dias de hoje – em que muitos dos países europeus, bem como alguns outros espalhados pela Ásia, Oceania e América do Norte, eram tidos como exemplos de nações desenvolvidas e civilizadas.

O restante do mundo buscou (e ainda busca), por décadas, séculos a fio, alcançar o padrão político, social, econômico, militar e cultural estabelecido por tais nações. Éramos todos, ora como colônias, ora como pátrias subdesenvolvidas, vítimas de uma visão etnocêntrica, a nós imposta pela dominação física e/ou cultural por parte de nações mais “poderosas”.

Não se contesta aqui o grau de desenvolvimento ou de civilidade alcançado por aquelas sociedades, mas se torna cada vez mais necessário discutir seus parâmetros.

Será que hoje, com o planeta atravessando um delicado processo de complicação das condições climáticas, esses parâmetros seriam os mesmos?

Será possível, que numa era de elevadas conquistas científico-tecnológicas como a nossa, tenhamos ainda a disposição de estabelecer modelos de desenvolvimento anacrônicos, como se estivéssemos em plena Revolução Industrial?

O que seria da humanidade, se toda nação resolvesse adotar fontes poluentes e não-renováveis de energia em alta escala? O Brasil, com todas as condições que vem elencando nos últimos anos, tem o direito de fazer como, por exemplo, os chineses (cujas impressionantes conquistas econômicas não escondem os desastres ambientais daí decorrentes)?

A resposta, claramente, é não.

Dados que anteriormente eram concebidos como alarmistas e sem fundamento são, a cada dia, referendados pela ciência, deixando claro que a humanidade encontrou, afinal, um ponto de inflexão.

Hoje sabemos que já foi ultrapassado o ponto-limite onde a Terra, tal qual um organismo vivo, consiga se regenerar em relação a tudo o que vem sendo destruído/modificado pelo ser humano. O Planeta está enfermo.

Apesar de desenvolvidas e civilizadas, as nações às quais me referi no início do texto encontraram, na virada deste milênio, bem como na manutenção dessas condições, um paradoxo que antes não existia, dado que não podem continuar a se desenvolver e a produzir bens sem novas fontes de energia alternativas que substituam fontes fósseis e termelétricas.

O modelo chinês, portanto, não nos serve de parâmetro. Nem o norte-americano, nem o asiático ou o europeu. O modelo a ser seguido ainda está sendo criado.

Não por uma nação do BRIC (o grupo de países emergentes onde se encontra o Brasil) ou por qualquer um dos tigres asiáticos. Muito menos pelas ambientalmente combalidas nações européias e norte-americanas. E sim por todas elas.

Não há, ante as necessidades do homem, mais espaço para visões unilaterais que ao longo do tempo produziram distorções e catástrofes que, direta ou indiretamente, atingiram a todos, fazendo do mundo o que ele é hoje.

Foi-se a era dos pólos opostos e dos maniqueísmos ideológicos. Aqueles que insistem em encenar essa peça revelam-se, cada vez mais, atores decadentes, num papel que já perdeu, há tempos, a importância, e mesmo o glamour.

Vivemos a era da conjugação das idéias e das forças; uma era onde não há uma limitação clara de onde atua um e outro; a era da integração das metas, do pensamento interdisciplinar e do comportamento transversal, plural, heterogêneo.

Ao contrário, portanto, do que sempre vimos e nos acostumamos a acatar, as necessidades da contemporaneidade nos obrigam a rever conceitos, padrões e modelos; a re-inventar.

Foi, pois, muito contente da vida que recebi o anúncio do Nobel de Economia. Em seus estudos, Elinor Ostrom alerta a todos nós que a ciência econômica precisa integrar outros conhecimentos e considerar a sabedoria local para lidar com desafios da atualidade, como o gerenciamento de recursos naturais.

Seus estudos são uma demonstração categórica da necessidade de enxergar o mundo com outros olhos. Uma de suas mais importantes conclusões foi a de que algumas políticas governamentais acelerariam a destruição dos recursos naturais, enquanto que, por outro lado, alguns usuários daqueles mesmos recursos (p.ex. pescadores, agricultores, madeireiros) investiriam mais tempo e energia para alcançar a sustentabilidade em nome de um interesse comum, em longo prazo. O período de defeso de certas espécies aquáticas, quando se deixa de pescar por um determinado período, a fim de preservar o nicho ecológico equilibrado, é um ótimo exemplo, e que há tempos é adotado por diversas populações ribeirinhas e tradicionais.

Em outras palavras, é como imaginar que o conquistador português houvesse desembarcado por aqui disposto a conhecer e a aplicar todo o conhecimento autóctone em associação ao seu, na tentativa de se estabelecer a maneira mais racional e respeitosa de se integrar ao meio ambiente.

Que delícia seria o Brasil, não é mesmo? Tendo todo o conhecimento daquela gente, acumulado por séculos, à sua disposição, para a construção do país do futuro...

Se isso sempre nos pareceu fantasioso ou mesmo idealista, as conclusões encontradas por Ostrom surgem como um alento: a partir delas, os conquistadores dos dias atuais - sejam eles governantes, multinacionais ou nações - deverão adotar uma postura mais sensata e humana: substituir a arrogância pela humildade como instrumento de contato será condição sinequanon para garantir a própria subsistência, deles e do Planeta.
photografie by NASA

sexta-feira, 9 de outubro de 2009

A Revolução é uma Merda!

*


Nós somos da pátria a guarda, fiéis soldados, por ela amados...
O aplicado Sargento Lourival, na maturidade dos seus vinte e poucos anos, mais uma vez deixava sua residência com ares de transtornado; desta feita, visivelmente irritado. Lucélia, sua mulher e companheira desde sempre, por alguma razão, o estava agora confrontando. Sentira-se ultrajado pelas palavras da esposa.

Não que o casamento estivesse em crise, pois o que se via era uma união estável entre aqueles dois que, sem dúvida, haviam conseguido fazer o amor entre eles perpassar incólume à rotina dos anos vividos. Eram, de fato, felizes.

Ela, sonhando com a maternidade. Ele, ardorosamente dedicado à farda verde-oliva, havia já sete anos. Recentemente fora promovido a 3º Sargento de Infantaria; motivo de empenho e alegria, mas também de infortúnios...

Lucélia se orgulhava do marido militar que, desde a juventude, prometera a ela defender, com a própria vida, a pátria e a família. O ingresso no Exército coincidira com o Golpe militar de 64, e ela sempre os apoiou – ao golpe e ao marido.

Mas, à medida que o regime se tornava mais violento e ditatorial, mais Lourival era requisitado em seu ofício, mais sua escala de serviço aumentava e mais missões obscuras lhe eram dadas, apartando-o do convívio junto a Lucélia, e esta da realização materna. “A Pátria está segura, mas e minha família, que ainda nem tenho?”, perguntava-se, cada vez que, deitada, olhava o travesseiro ao lado, intacto.

Por vezes, arrumou-se, encheirou-se e empetecou-se para ele, tal qual uma fêmea cujas necessidades não vão além do desejo do coito, do desejo de ser envolvida pelas mãos rudes e olhares desinibidos do parceiro, que, por fim, não aparecia, deixando-a, em princípio, frustrada, mas logo, magoada.

Por amor, as mulheres fazem qualquer coisa; quando magoadas, vão além.

A cada noite solitária, escutava as mesmas justificativas, sempre embasadas pelas “necessidades da revolução”. Lourival dizia que os comunistas estavam invadindo o Brasil, e que por isso era necessário estar em constante estado de alerta.

Ele não notara, mas Lucélia já não demonstrava o mesmo orgulho por sua atividade. Menos ainda quando, por conta da visita de um primo, ela escutara dele sobre certos abusos que os militares estariam cometendo em escuros porões. Ela nunca ficara sabendo daquele tipo de atividade. Pensar que Lourival pudesse ser um torturador a deixou sem ação. Sentiu-se enganada.

Seu desgosto era crescente, de modo que não saiu em defesa do marido, como faria em outros tempos. Surgiu daí um sentimento de raiva da vida que levava. Não achava justo se sacrificar para que seu marido sacrificasse a outros.

A partir de então, e cada vez mais, ao invés de beijos, despediam-se, friamente. A petulância da antes dócil Lucélia o atarantava. Sentia-se desafiado em sua autoridade. E, como se não bastasse, passou a ter que conviver com as desconcertantes palavras alardeadas pelo primo da esposa que, pouco antes de partir, olhou maliciosamente para ele e disse “Essa revolução é uma merda!” – palavras que não lhe saíam mais da cabeça e, pior, também da boca da companheira, cujo sentimento era o mesmo de uma mulher traída – por uma revolução que destruía seus sonhos, enquanto o marido a ela se entregava de corpo e alma.

“Então é assim...”, concluiu Lucélia.

Foi, pois, possuída por um sentimento de abandono que, àquela manhã, logo após servir a Lourival o café, perguntou-lhe, asperamente: “Volta hoje?”. Diante da negativa, correu à janela e, para desespero do sargento, gritou a plenos pulmões: “A revolução é uma meeeeeeeeeerda!!!”.

Lourival quase cai da cadeira com o inusitado da ação, e, ato-contínuo, se lança ao encontro do corpo dela, derrubando-a no chão.

Bufando, olha para ela com ódio e diz: “Nunca mais repita isso, está me entendendo? Nunca mais!!!... Ou se acaba esse casamento!” -, e sai, furiosamente.


Lucélia, ainda estirada, olha para porta de casa, aberta, mas nem pensa mais no que acontece lá fora, pois está perdida em pensamentos seus, de desejo e de vingança, e até sente prazer...

Quanto ao sargento, seguiu caminhando em direção ao ponto de ônibus, transtornado pela falta de disciplina em sua casa, nas ruas e no mundo. Pensava menos na esposa que no maldito primo que lhe enfiara tais asneiras na cabeça... “Maldito duma figa!”... Malditos comunistas!... Filhos duma puta sem patriotismo! Temos que dar cabo a essa gente!...”-, pensava o militar, enquanto caminhava apressado, destemperado pelas ruas do bairro.

Apesar de esbaforido, não estava atrasado. Entendeu por entrar numa padaria onde pudesse concluir o café e também enxugar o suor que lhe caía da testa às têmporas, ameaçando borrar seu fardamento.

De rosto lavado, sentou-se ao balcão e pediu uma média, “bem forte”, pontuou.

Enquanto esperava, porém, o grito da mulher não parava de ecoar em seus ouvidos, não deixando com que aquietasse a ebulição em seu peito. Sentia, na verdade, vontade de dar-lhe umas bolachas, mas a respeitava muito. Então voltava sua ira ao primo, e continuava a praguejar, sem remorso.

De repente, escutou da boca de um senhor sentado numa mesa próxima: “... é culpa dessa revolução, que é uma merda!”. Foi o estopim!

Como se já houvesse ensaiado aquele mesmo ato uma centena de vezes, não hesitou: girando violentamente o corpo e sacando um par de algemas, agarrou o homem, acusando-o, “comunista!!!”

- Espere, senhor...
- Comunista safado! Vai aprender a respeitar a revolução!
- Mas, sargento, eu...
- Cale a boca, seu imundo! -, berrou Lourival, algemando-o.
- Eu posso ao menos me identific...
-Já disse para calar a boca! -, disse o sargento, aplicando uma gravata no indefeso homem, ao passo que o arrastava para fora do estabelecimento.

A delegacia era do outro lado da rua, e para lá seguiu Lourival, arrastando o infeliz pelo pescoço, que mal conseguia respirar.

- É uma merda? É uma merda, é? Pois sim! Vai ver o que é se meter na merda, seu comuna de bosta! -, repetia o sargento, já entrando na delegacia. O delegado, do fundo de sua sala, esticou a vista para melhor ver, e logo se apresentou

- Pois não, sargento?... O que aconteceu?-, perguntou.

Dando um cotovelaço nos rins do prisioneiro- que caiu de joelhos -, Lourival respondeu:

- Enfia este merda aqui nas grades, e dê a ele um xarope de tosse, ou algo melhor!... Estava no comércio, Seu Delegado, alardeando que a revolução é uma merda!... Mete ferro nesse velho comunista filho da puta!

No chão, e ainda algemado, o senhor buscava um pouco de ar. Antes que o levassem, conseguiu pedir para que conferissem sua identidade. O silêncio tomou conta do ambiente. Como ninguém se mexia, o delegado então conferiu a identidade... E constatou que o elemento em questão era o senhor Avilásio Martins Santa Cruz - General da Reserva...

Lívido, Lourival permanece imóvel. O delegado, entre a surpresa e o temor, ordena a imediata prisão do sargento, chamando-o incompetente, bisonho e palermão. Humilhado com nunca se sentira em toda a carreira, Lourival escuta impropérios de todos os policiais presentes ao recinto, que são ditos aos berros, com o explícito e lacaio intento de agradar ao insultado general.

As algemas de Santa Cruz são retiradas. Este, por sua vez, levanta-se serenamente e, ajeitando a gola da camisa amarrotada, pede ao delegado a autorização para ter uma "última palavrinha" com o novo detido.

Sentado no fundo de uma cela, sozinho, o sargento não conseguia estabelecer uma linha de raciocínio lógico que o permitisse compreender o que havia acontecido, ou que explicasse como ele fora parar ali. Logo ele, merecedor de tantos elogios e da aprovação de todo seus superiores hierárquicos... Como fora parar ali, sendo acusado justamente por defender sua amada revolução?!... Quanta injustiça!

Os acontecimentos se passavam de modo desordenado em sua cabeça (agora, completamente mergulhada em confusos pensamentos); a esposa, o primo, a revolução, a prisão do general... Tudo estava interligado e nada parecia fazer o menor sentido... Então, entra o Santa Cruz.

Lourival se põe de pé e atende ao dedo indicador deste, que se dobra, ordenando-o que se aproxime. O sargento, num gesto marcial e enxuto, se posta à frente do general, esperando pelo pior. Este se abaixa um pouco e, ao pé de seu ouvido, lhe diz, num cochicho: “Eu não disse que essa revolução é uma merda?!...”.




foto: joão sassi







*livre adaptação de anedota dos anos 70







terça-feira, 6 de outubro de 2009

Violência e Paixão


Dicó é tido por toda a vizinhança como um bom rapaz. É novo, de uns 20 anos, mas exala um ar de responsabilidade que muita gente adulta não possui. E é sensível.

Costuma caminhar por aqui e por ali, como se estivesse tomando conta de tudo, levando sempre um surrado violão a tira-colo. É excelente músico. Também toca flauta, percussão e outros sons agradáveis.

Já tinha ouvido muito falar dele; que namorava a Tatiana - uma menina novinha da rua de baixo; que estava organizando um grupo de voluntários para limpar as margens do córrego; que era, enfim, um garoto muito boa-praça.

Quando o conheci, sorriu sem parar. Parecia sempre solícito, como se também me admirasse por sempre haver ouvido falar bem de mim.

Não gosto muito disso. Sou meio mocado, e quando neguinho vem com tanto sorriso... Desconfio! A não ser que tenha motivo; uma piada é uma ótima desculpa. Eu sempre uso. Mas sem piada não dá.

Há muito, porém, não escutava mais nada a respeito do bom rapaz. Até a manhã de hoje.

Estava deitado - esticado na rede da varanda -, curtindo a sensação de um jardim umedecido e esverdeado pela chuva da madrugada, enquanto saboreava Tchekov. Desde há anos, tem sido ele o meu grande parceiro matinal. Muitas vezes acordo sem ter o que comer, sem água ou sem roupa passada. Mas basta mergulhar em suas palavras para que eu me sinta reconfortado e pleno.

Reconfortado estamos quando nos sentimos felizes por viver; pleno é quando rimos, gargalhamos e até choramos para as paredes, para um objeto ou animal. Ou simplesmente cantamos.

Estou lendo um livro de contos desse velho russo, mas que nunca acaba, pois sempre gosto de recapitular umas duas ou três passagens, antes de dar início a uma nova empreitada. Faz 5 meses que cheguei à página126; hoje estou na 127...

E foi dentro desse espectro de reconforto e plenitude - sim, àquela altura eu já dera início a um verdadeiro momento cênico, tanto eu ria e me emocionava com o que lia-, que apareceu Allan, meu senhorio. Pousei o livro sobre o colo e o cumprimentei, serenamente; mas notei que ele trazia consigo um ar preocupado: “tenho uma má notícia”, anunciou.

Allan então me contou que Dicó estava sumido há algum tempo, pois sua relação com Tatiana, a moça da rua de baixo, havia terminado. Ela não o queria mais. Mesmo assim, continuavam a se encontrar, esporadicamente, para matar as saudades e, principalmente, as vontades que permeiam os pensamentos, pingulins e xoxotinhas de qualquer um que tenha entre 16 e 21 anos. Tatiana tem 16.

Ao mesmo tempo, a mocinha, inebriada pelos prazeres de sua tenra plenitude existencial, inventou de chamar o ex-cunhado, que por ali nada fazia, para alguns momentos de luxúria, quando o ex-oficial por ali não aparecia.

Tudo ia muito bem, até que Tatiana, em pleno deleite com o novo amiguinho, foi flagrada pela mãe, que não gostou de ver sua pequerrucha em posições íntimas sobre sua própria cama de casal.

Houve escândalo. Vizinhos abriram as janelas para espiar, e papagaios, periquitos e sabiás certamente hão de ter voado para outro lugar, tantas foram as demonstrações de moralismo dadas pela voyeur intrometida; todas em altos decibéis. Eu mesmo tenho de admitir que não estava por lá, mas a esta conclusão é fácil se chegar, quando a dona da boca tem uma bocarra em seu lugar.

Tão alta foi a bronca, que as reverberações daquela maré alcançaram o ouvido de Dicó, fazendo-o sentir-se como se em meio às correntes de um mar ressaqueado estivesse. O coração pulava dentro do peito, machucado, em estrebuchos que só o desejo preterido poderia dar jeito. Foi tirar satisfações.

Pegou a menina pelo braço, olhou raivosamente para o irmão, que correu, e levou-a para um lugar onde não houvesse ninguém: a varanda da minha casa.

Lá, houve ainda mais discussão. E violência. Dicó, cego de ciúme e dor, agrediu Tatiana, empurrando-a violentamente contra a quina de uma mesa, fazendo com que ela caísse e batesse o rosto contra o chão. Parece que houve ainda algum safanão, e como resultado, um rosto ensangüentado, semidesfigurado.

A mãe de Tatiana chamou a polícia e todos foram para a delegacia.

Hoje, Tatiana repousa na casa de um parente, longe dali. Dicó, que fez 21 anos na véspera do ocorrido, está detido.

Dizendo isso, Allan se levantou e ficou me fitando. Olhei para ele e fiquei refletindo um pouco...
A poucos metros de mim, no chão, visualizei marcas de sangue. Pensava que eram do cachorro. Imaginei o embate, a covardia, a cena em si, e arrematei:

- "Tá na genética da gente, na hereditariedade do Homem; todo mundo é corno. Mas daí a... Acho lamentável! Deplorável, mesmo...".
Com um sinal de anuência, mas em silêncio, Allan pôs-se a caminho de casa.
Voltei os olhos para livro e, como se encontrasse a inspiração necessária, emendei: "E tem mais: Se reagíssemos sempre assim, não haveria Tchekov que nos devolvesse a alegria do viver!".

quinta-feira, 1 de outubro de 2009

Brasil-Acima-de-Tudo!

Dentre as coisas mais emocionantes e bonitas que tenho como um presente da vida está o Hino Nacional Brasileiro.

Tudo bem que futebol, mulher e ovo cozido com gema mole –este em primeiro lugar- sejam coisas de outro mundo, insubstituíveis, mas o hino nacional... Pô, o hino é muito fodão mesmo! E digo isso, literalmente, da boca para fora.

Não é que ele seja menos ou mais bonito que qualquer outro hino, pois se trata de uma questão de preferência pessoal e patriotismo declarado. Gosto da letra, da métrica e da melodia.

Dos símbolos pátrios, e ainda que reconheça a beleza e originalidade de nossa bandeira, o hino é o que mais me representa, disparado. Quanto ao brasão ou ao selo real, dispenso comentários.

Nasci numa terça-feira, durante uma ditadura militar, quando se tinha menos liberdade para viver. Mesmo assim, minha infância foi plena, feliz e intensa. Soube, desde pequeno, da existência do Mal, embora tenha sempre sido tratado como um valioso Bem. Assim sendo, e ainda que por imposição cívica, entendi que o hino era, sobretudo, brasileiro.

Quando dos meus oito anos, ainda no primário, tínhamos um dia na semana (a terça-feira) em que se realizava o hasteamento da bandeira. O LP que continha o hino era tocado numa vitrolinha com amplificação caseira. Eu adorava!

Não pela bandeira ou pelo hino –reconheço- mas porque “atrapalhava” a aula. E porque dava pra fazer “bagunça”. E porque era uma oportunidade deliciosa para eu me esbarrar na menina pela qual eu estivesse apaixonado. Eu sempre estava apaixonado.

Três alunos –geralmente os melhores- eram escolhidos para a honrosa função. Eu nunca fui agraciado com tal honraria, mas o Édson, filho da professora e protótipo de menino perfeito (ainda que excessivamente sardento, feio e do cabelo vermelho), era sempre um dos escolhidos. Tão logo a agulha tocasse a bolacha, contudo, eu já nem me lembrava da existência do Ferrugem. Preferia ficar tentando fazer meus coleguinhas rirem por meio de caretas engraçadas. As caretas que eles faziam de volta eram igualmente engraçadas, mas hilário mesmo era olhar para uma careta ao mesmo tempo em que se olhava para a tia, logo ao lado, com cara de flagra!

Como resultado, a associação entre o hino e uma sensação de bem-estar estabeleceu-se naturalmente em meus subterfúgios emocionais. Eu aguardava a “hora do hino” com a mesma ansiedade que aguardava a aula de educação física ou de artes, quando tudo o que eu fazia era divertido.

Na seqüência, por um período relativamente breve, fui “Lobinho” – uma espécie de microescroteirinho. Apesar de lidar muito mal com o autoritarismo inato àquela instituição (era rebelde e indisciplinado), conquistei alguma simpatia entre os líderes da alcatéia por, ainda novo, haver já decorado um bocado daquela rebuscada letra.

Após o fim da ditadura, o hino virou coqueluche nacional ao ser liricamente cantado por Fafá de Belém, em prol das “Diretas, Já!”, e também, logo em seguida, por conta do “passamento” do Tio Tancra.

E mesmo quando ia mal a política e também o futebol, o canto da nação era entoado em ginásios, autódromos e tatames, mundo afora. Isso dava sustentação ao orgulho nacional.

O momento crucial para a consolidação da minha admiração se deu enquanto estive, involuntariamente, servindo à pátria (amada, idolatrada, salve, salve).

Toda terça-feira, o Regimento se reunia no pátio central do quartel, numa série de intensas evoluções por parte de todos os esquadrões, para escutar as ladainhas do Comandante.


Isso envolvia centenas de militares. Eu curtia muito o movimento das massas, principalmente quando éramos recebidos pelo Pelotão da Fanfarra, ao som de Besame Mucho, versão ragga-techno-marcial-mix; eu simplesmente pirava!

Após todos estarem perfilados, em ordem, vinha o hino... Também por meio de uma vitrola e um bolachão, como nos tempos remotos. A primeira parte é belíssima, e a segunda, maravilhosa!

“Mas, se ergues da justiça a clava forte,
Verás que um filho teu não foge à luta,
Nem teme, quem te adora, a própria morte.
Terra adorada...”


Ao cantar essa estrofe (sempre, sempre, sempre...), eu sentia uma emoção profunda, de arrepiar os pêlos e derramar lágrimas; um orgulho visceral! Sequer me envergonhava pelos olhos marejados, afinal, aquele momento era, indubitavelmente, o único pelo qual valia à pena estar ali.
A passagem pelos Dragões só aumentou minha paixão pelo hino. Escutá-lo, cantá-lo ou assobiá-lo tornara-se, para mim, um prazer real.

Back to present, vinha eu, na bela manhã da última terça-feira (!), a conduzir meu bólido, rumo ao trabalho, deslizando-o por uma via inóspita quando, por aparente tédio, liguei o estéreo.

Passei pelas minhas estações favoritas e não encontrava nem música nem notícia, até que, subitamente, reconheci os acordes... Era ele, o hino!!!

Aumentei o volume e soltei a voz...!
E tal qual na infância, exatamente como na adolescência, eu cantei, eu sorri, eu chorei; eu me senti feliz!

"Entre outras mil,
És tu, Brasil,
Ó Pátria amada!
Dos filhos deste solo és mãe gentil,
Pátria amada,Brasil!"