segunda-feira, 28 de setembro de 2009

Quotidiano


O ambiente em que trabalho é um tanto carregado.

Centro do poder político e (parcialmente) econômico, o Congresso Nacional atrai espécies dos mais diversos nichos ecológicos.

Via-de-regra é muito bicho pernicioso, pestilento e perigoso. E também muito bicho emplumado, ao estilo “sou amigo de Rei e primo do pavão doirado”.

Por isso, ando por ali com muito cuidado, sem muito olhar, resguardando minha intimidade e também o sorriso – que, aliás, não tem a menor importância quando não está em companhia do crachá funcional da casa. Sem ele, sou sempre digno de desconfianças rasteiras.

Mas se me meto num terno bem cortado, sou recebido como autoridade, com demonstrações de subserviência e humildade excessiva. Muitos por aqui dependem disso - desse carinho no ego dado por quem só o faz por obrigação – para poderem dormir direito, sem o menor peso moral pela culpa que suas ações causam à teia social. “Viu, querida? Aqui me chamam Doutor!” -, regozija-se uma destas espécies tacanhas, vistas aos pinhais pelas searas capitais.

É fácil reconhecer um animal desses, dada sua proliferação meteórica em ambientes fechados, escuros e acarpetados. É um tipo que traz a marca indelével, não na obviedade de sua aparência - sempre irretocável -, mas em seus trejeitos pessoais: na forma como opera o celular, no modo de tratar seus semelhantes, de torcerem o nariz e, principalmente, na sub-liminaridade de seus grunhidos. Por isso, já disse, ando sempre de butuca aberta.

Hoje, agorinha há pouco, deixei-me levar pelo tardar da hora enquanto passeava pelo túnel do tempo, no que passei quase desapercebido à presença de uma outra espécie, raramente vista: a do homem cordial.

Vinha eu, caminhando solitariamente pelos vazios corredores do Senado, dado que era já noite plena, quando, ao cumprimentar, de lampejo, esse ser, escutei: -“E a moça, vai bem?”

Era um antigo segurança do Senado. Confesso que não havia sequer olhado em seus olhos, no que dei meia-volta e fui ao seu encontro.

Surgiu então a figura sólida e ao mesmo tempo tenra de um senhor mulato, com seus 70 anos já há muito completados, enfiado num terno de gente importante, com o botom do Senado reluzindo em sua lapela. Provavelmente se mudou do subúrbio carioca para a nova capital assim que JK cortou a faixa inaugural. Ou antes.

- Como disse?
- E a moça, vai bem?
- Qual delas?-, rebati, fazendo graça.
- A moça com quem você está sempre por aí... Sua esposa, presumo.

Olhei à volta e não vi viv’alma. Só o espaço enooorme, vazio... E aquele senhor, calado, mimetizado a uma poltrona bege, quase escondido por detrás de uma bancada. E senti como se estivéssemos num outro lugar, a ponto de me debruçar amistosamente e explicar-lhe:


- Ah, não, não somos casados... Somos namorados. Acabei de estar com ela. Vai muito bem, obrigado.
- Você me desculpe a intromissão...
- Você tem a liberdade...
- Mas é que vocês têm uma sintonia bem amadurecida; uma coisa que faz gosto da gente ver.
- Mesmo?
- Sim. Já vi vocês várias vezes na lanchonete do Senado: sempre felizes, bem humorados!...
- De fato, sorrimos muito quando estamos juntos... Mas é coisa de casal.
- Quem dera fosse!... Mas não é só isso; tem mais coisa aí... É coisa que se vê pouco nos casais de hoje.
- Não sei se fico feliz ou triste por isso...
- Fique feliz! A moça é jovem, e o senhor já é maduro; deveriam se casar logo.
- Bem, ela é mais velha, mas tem alma juvenil.
- É muito bonita.
- Obrigado.
- Se o senhor me permite...
- Claro!
- Se me permite, devo dizer que o mais importante é você falar para ela, num ou outro momento: “eu te amo”. – é fundamental. Acorda cedo e sai pro trabalho, mas antes, diz “eu te amo”.

Olhei para suas olheiras pesadas, de quem há muito agüenta as dificuldades e a mesmice do viver. Perguntei seu nome: “Anastácio”. Apresentei-me e o agradeci com sinceridade pelas palavras de afeto.

Voltei ao gabinete.

Passava das oito da noite e já não havia mais ninguém por lá. As mesmas portas pesadas de madeira. As mesmas salas, as mesmas mesas, computadores e a mesma sensação de que sempre há muito que se fazer.

Comecei a apagar as luzes e a conferir se estava tudo “em ordem” para por fim à jornada.

“Por aqui, as coisas nunca mudam”, pensei, já trancando a porta, "é sempre a mesma coisa!".

Fora do gabinete, porém, olhei para aquele vazio monumental e senti uma diferença no meu estado de espírito... Algo havia mudado.
.
photografie: joão sassi

sexta-feira, 18 de setembro de 2009

O Fim do Arco-Íris e o Mel da Vida


Fazia muito calor. Eu, suado, acabara de chegar em casa.

Ao colocar as chaves sobre a mesa, escutei um leve assobio cortando o tórrido calor do meio-dia.


Axé apareceu logo a seguir. O que tem feito pouco, desde que se mudou para o outro lado do rio. Trazia uma cara amassada:

- Cachu?
- Cachu...

Coloquei a sunga e meti um chapéu de palha na cabeça.

- Bebeu, P’xé?
- ...Naaaada! É que durmi mal, mesmo... Uns musquito do carái!

Garoto novo, nascido em Pirenópolis, é o perfeito goiano do pé rachado. Quando quer alguma coisa, conta a estória até um certo ponto e pára. Quando o interlocutor dá continuidade ao raciocínio interrompido, já está oferecendo a ajuda requerida, mesmo sem se dar conta. Astúcia goiana.

Vai caminhando à minha frente. Enquanto caminha, passa a mão pela vegetação, como o pastor que dá atenção diária a cada uma de suas ovelhas. Quando identifica o capim certo, arranca-o e, já mastigando-o, fala de qualquer coisa sem importância, só para ratificar, subjetivamente, a importância de se mastigar aquele capim. Sente-se mesmo integrado ao Cerrado. E, apesar de muito jovem, olha o horizonte com certa nostalgia.

Até hoje fala de um amor que deixou no Recife. Amor não vivido ou verificado. Amor de Platão, idealizado. Ele contava 16, e ela, 12... Nunca se beijaram, mas ela, até hoje, é a lembrança do melhor que já viveu.

Pela trilha segue desleixado. Joga os pés pra frente, fazendo a chinela quase se desgarrar. Mas não machuca o chão. Desliza.

Fala de planos; mais da falta deles. Do nada a se fazer. É a representação de um vagar pseudo-hedonista, vazio, niilista. Mas fala também das plantas, e para o que cada uma serve.

Se precisa comer, fareja. Sabe onde tem. Sabe como chegar, comer e sair, sem reclamar. Aliás, raramente reclama. Quando o faz, é sempre do mesmo modo, “Isso é um vagabundo!” – é o que diz, seja qual for o motivo ou objeto da reclamação.

Em dia de Sexta, tem comida no João de Deus, vizinho da casa do alto da rua

- Lá, o rango é fera! A cozinheira gosta de mim. Entro pela cozinha e ninguém dá conta!
- E quando não tem?
- Aí, procuro outra coisa. Na Sandra, sempre tem alguma coisa. A mãe dela tá lá.
- Comida boa?
- Arroz, feijão e salada...
- Nada de carne?...
- Não, o povo é tudo vegetariano. Mas tá bom demais!...
- Mas é no capricho?
- O arroz é que nem arroz, tudo igual. O feijão é bom, mas a salada é aquele bando de folha... Mas dá pra encher a barriga.

Mesmo sem casa fixa, ele sempre encontra o que comer ou onde dormir. Cheguei a sentir um pouco de inveja, lembrando-me das muitas vezes em que me senti sitiado em meu próprio castelo, sem perspectiva de, a curto prazo, saciar minha fome. Fome no mato é fogo.

Quando o sol se fazia mais quente, a água se fez presente. A cachoeira estava translucidamente refrescante.

Axé, como bom goiano, inventa de dar saltos esvoaçantes, tortos e acachapantes. Sempre dum lugar perigoso, sob risco de bater em pedras e machucar-se. Ah, a alma goiana...

Aparece o Dentinho, da favela do Varjão.

Corpo duro, seco, duma musculatura rija, ainda que pouco desenvolvida, de quem cresceu numa vila rural e fez de tudo o que um moleque que nasce solto deve fazer, de bom e de mau. De suas estripulias, resultaram algumas cicatrizes pelo corpo. A da barriga parece coisa de faca, mas é melhor pensar que não.

Dentinho e Axé se entendem à perfeição. É comum que eu me demore um pouco para saber do que estão falando. E costumam falar de coisas simples como se fossem sérias. E é bom que seja assim, pois a vida não é simples para quem não é levado à sério.

Todo dia é dia de luta, de correr atrás, de fazer “um corre”, quando não se está correndo.

As mulheres gostam do sol da manhã, pois são inteligentes e delicadas. Homem, como é tudo xucro, queima a pele e os neurônios ao sol do meio-dia. Aquela caçapa tava lotada de vagabundo que não faz nada.*

- Pô, isso aqui só tem cueca!... -, reclamou o Dentinho.
- Nunca vi desse jeito... , - disse Axé.
- É capaz até que já tenham descoberto nossa parada, Axé...
- Naaaada! Ali é só eu você; tá guardado!
- Mas, minino!...
- Tô falâno...
- Ôxi, que já é Primavera, hômi, e as bicha tão trabalhando há mais de ano! Deve tá cheio até a tampa; já dá di recolhê.

A cachoeira ficara para trás, e Dentinho agora nos acompanhava pelo caminho de volta. Trazia sua bicicleta.

- Ela passa pelas pedra?
- Total.
- Essa aqui é minha nave espacial pr’eu andar na cidade. Dá até para seguir estrada!
- Até Piri?
- Ôxi! Bota um tijolo de rapadura na mochila e quero ver!
- E um pouco daquele mel do Piauí, né Dentinho -, completei.
- Mas, rapaiz, aquele mel é tora!

Axé, continuou:

- O problema é ter de derrubar a árvore...
- Qui nada, rapaiz! É só capturar a rainha! Bota fogo que ela é a primeira a sair por causa do fumacê, hômi; as ôtra vão tudo atrás.
- Mas onde tá fica difícil metê fogo; pode matá a árvore.
- Nada a ver! Bota uma caixinha na saída, com um pouco de mel dentro, que a bicha vai direto... E as ôtra vão atrás! Já fiz isso dimais, hômi, ôxi!...

Àquela altura, já inteirado do assunto, ia imaginando cada cena descrita pelos dois, e minha cabeça ia longe... Lá pro alto da copa de uma sibipiruna, junto a uma colméia farta de néctar e milhares de abelhas zumbizando por ali.

Então Axé parou pra mijar. E Dentinho ficou olhando.

Taí uma coisa que eu nunca tinha visto: um homem olhando outro homem mijando. Para uma mulher não se olha porque o ato se assemelha a uma covardia; para os homens, porque parece baitolagem rasteira.

Mas Dentinho tá longe de ser perobo. Axé estava, na verdade, aferindo o grau de sua certeza quanto ao mel salvaguardado.

Não havia colméia ou sibipiruna, mas um charmoso furo no tronco de uma velha árvore retorcida, por onde entravam e saíam dezenas de abelhas por minuto, bem rente à trilha pela qual caminhávamos. Coisa que gente complexa e pós moderna não vê; coisa para gente simples, que nem sempre tem o que comer.

- Cada uma que tá entrâno, tá trazêno um pouco de mel, véi! -, disse Dentinho, com olhar fixo no vai-vem das bichinhas. –, Ói, quanta!
- Deve tá cheio até aqui, disse Axé, colocando a mão no tronco, cerca de um metro acima do solo; coisa de um ou dois litros...
- Tem mais, hômi! Si elas tão trabaiâno desdo ano passado!... Têmo que pegá logo, antes que os vagabundo pegue de nóis!

Ficamos os três, lado a lado, escorados nos galhos, a pouco mais de um metro do buraco delas, interagindo o tanto quanto nos fosse possível, a fim de imaginarmos a delícia de um tronco bêbado de mel.

Para eles, não se tratava de nada novo, mesmo que precioso. Já a mim, a sensação de estar ali era semelhante à de um menino que descobre na vida as verdades escondidas. Que se conecta com seu íntimo, estabelecendo ligações há muito esquecidas, e que, não obstante, sejam essenciais à nossa plenitude.

Encontrar um tronco cheio de mel é o mesmo que achar um pote de ouro no fim do arco-íris, com uma única diferença: o mel existe.









*singela homenagem ao Casseta e Planeta (das antigas)




**photografie: joão sassi

sábado, 12 de setembro de 2009

A Separação






Ao passar pela porta, já não se sente tão bem.

O acolhimento de antes se foi. A confiança também; e com ela, a cumplicidade.

São coisas que não se explicam, mas que se sentem. Qui parla? O coração, por certo, mas também outras instâncias. Sabe-se apenas que, de súbito, já não há mais, já não é mais.

Como o abalo sísmico que, se a tudo não devasta, altera. As rachaduras, o eixo empenado, a falta de base... Emocionais ou não, de difíceis reparos, quase irreparáveis; senão, de fato.

Há algum tempo sentia aquilo. Era entrar e lamentar. Sair e lamentar. Abrir ou fechar aquela porta significava uma pontadinha a mais no peito - ainda que fosse Sexta-feira; havia sempre o espaço para aquela dorzinha.

Passou a buscar nos antigos encantos um motivo para alegrar-se. Vã nostalgia. Cantos esquecidos, cheios de teias de aranha. Buscar o passado só aumentava seu desencanto.

O trato, antes intenso, agora era pouco, quase inusitado. Da parte de ambos. Dele, mais.

Ressentia-se e culpava-se pela falta de constância, pela atenção rala. E por não tratá-la com o devido respeito e carinho. Lá fora, as plantinhas sentiam na pele as emoções de uma relação conturbada: em momentos de paz, eram aguadas, e quando não eram, esquecidas. Se não fosse pela chuva que cai do céu...

Ela vinha se tornando cada vez mais estranha a seus olhos, o que não o impedia de buscar motivos para se sentir bem. Como uma noite bem dormida. Ou uma manhã bem acordada.

Quando o dia amanhecia, ainda deitado, tudo lhe parecia bonito, diferente. Pouco depois, o conhecido incômodo, a falta de intimidade. Já não havia tempo para o café da manhã; outrora venerado, agora, tomava-o no trabalho.

Do trabalho para a rua, e da rua, para outra cama que melhor o acolhesse... E ela, lá, cada vez mais esquecida, solitária. Ainda assim, pouco reclamava.

Sentia-se bem, dormindo fora, posto que era bem tratado, mas mantinha o pensamento longe, na insegurança da companheira abandonada. Pensava no que podia lhe acontecer e no que seria do futuro a partir da decisão que, cada vez mais, se mostrava necessária... e doída.

Quando voltava, baixava a cabeça, e aproveitava para se lamentar da poeira no chão. Do banheiro sujo. Da louça na pia. Da sua cara amarfanhada... Nada era como antes. E só no sono encontravam a velha harmonia.

Mas não naquela noite.

Ainda de madrugada, ele foi à cozinha, tendo se deparado com um grilo enorme, horrendo, da cabeça gorda, escalando as abauladas paredes da moringa de barro, seu bibelô. Foi uma sensação desagradável; mais uma, dentre tantas.

Como que em consequência daquele mau-estar, logo na manhã seguinte, acordara de mau jeito. Um movimento brusco e tinha seu humor comprometido.

Na cozinha, olhou novamente para moringa d’gua; seca havia dias. Lembrou-se do grilo e imaginou que o inseto pudesse estar ali dentro. Estava certo.

Viu enormes antes saindo pelo bocal. Tapou-o e correu ao jardim.

Colocou-a no chão e esperou... Batucou no fundo da moringa e esperou... Virou a moringa. Sacudiu a moringa. Bateu na moringa. Mas o bicho não saiu.

“Com água, talvez...”, pensou. E foi atrás de uma mangueira.

Num instante, o terror! Quando menos esperava, viu um grilo imenso surgir à sua frente, a poucos centímetros de seu nariz. A repulsa como reflexo, o susto, a falta de ar, a moringa arremessada!... O rosto lívido.

Ao procurar pelo bicho asqueroso, enxergou-o por entre as plantas, trôpego. Ainda que feio, era engraçado. Como um grilo de tênis.

Ao abaixar-se para melhor ver, recebeu um surpreendente golpe pelas costas. Era o abajur de bambu que o vento derrubara, num violento sopro.

Assustado, levantou-se, trêmulo. Olhou à volta. O abajur roto, a moringa despedaçada, as plantas maltratadas, o chão sujo, a rede pouco usada... E entendeu bem o que deveria ser feito.

A relação não é mais a mesma. Nem o respeito. E a casa, sua grande companheira, enfim, resolveu se pronunciar.

Photografie: joão sassi

sábado, 5 de setembro de 2009

Và Dove ti Porta il Cuore


Em meio aos nossos, sentimos segurança. Longe deles, crescemos.

Já estive por aí afora, visitando países. Não muitos, mas significativos.

Politicamente, identifico-me apaixonadamente com a Argentina.

Sociologicamente, com Cuba.
Antropologicamente, com a Bolívia.
Crèpavecnutellamente, com a França.
Indiferentemente, com a Inglaterra.
Irresponsavelmente, com o Canadá.
E, afetivamente, com a Itália, onde sou mais que Rei, senão um César.

Lá cheguei aos 20 anos, quando sempre se tem um grande amor no coração.

Era minha primeira vez.

Mezzo nervoso, mezzo excitado, resolvi acatar a sugestão de bebericar alguma coisa antes do vôo, de modo a me “encaixar” melhor na poltrona. Esta era também uma experiência inédita, o álcool.

Tomei exatos dois copos do Almadén servido a bordo. E viajei...

Dos braços do Cristo Redentor, às pontiagudas catedrais de Milão, onde fizemos escala, não lembro coisa alguma. Somente quando soou o sinal de alerta, advertindo aos passageiros que reatassem o cinto, é que pude limpar a baba seca do canto da boca. Atravessáramos o Oceano e eu nem me dera conta. Nem tive tempo de sentir medo.

Despertado, percebi que meu sorriso de bom-dia não era compartilhado pelos demais. Pudera! Tendo permanecido imóvel por todo o trajeto, acabei servindo de obstáculo aos colegas de poltrona que, porventura, quisessem ter ido ao toilet. Eu era o último (ou primeiro), numa fileira de cinco... A única que me deu graça foi uma freira. (Será que freira não faz xixi?)

Pousamos. Não resisti quando a temperatura externa (3º) foi anunciada. Pedi licença para “ver” aquele espetáculo, e botei a cara pra fora do avião, junto à escada.

Vestindo apenas uma camiseta Hering, notei que minhas costelas tremiam ao simples contato com o ar. Não poderia haver nada mais divertido que aquilo! Notei também que duas aeromoças me olhavam com cara de troça. A elas, eu era o perfeito mineiro vendo o mar pela primeira vez.

A chegada a Roma foi grandiosa. Recebido por quem eu queria, como eu queria e onde eu queria. Aos vinte anos, não se precisa de tanto para ser feliz. Mas, fazer o quê?...

Ela era linda e tinha muitas amizades, o que me deixou ainda mais à vontade. A reciprocidade da paixão nos leva, todos, à plenitude, a ponto de nos afeiçoarmos até mesmo aos amigos dela. Quando não nos apaixonamos pelas coisas do outro, simplesmente não nos apaixonamos pelo outro. Assim é.

Dos lugares por que passei, a primeira coisa que me lembro é do cheiro. Há carros diferentes, há pessoas diferentes, mas nada me chama mais à atenção que um cheiro diferente; tanto melhor se for bom.

De cheiro em cheiro, uma semana se passou, e naquela noite, recebi especial incumbência: preparar um prato, à brasiliana, como oferenda ao aniversariante do dia, Daniele. (Sim, Daniele. É que lá, os homens roubaram todos os nomes de mulher –Andrea, Simone, Daniele-, enquanto a elas, restou inventar nomes diferentes – Cicciolina, Chiara, Nicoletta, etc.)

Daniele, como eu, tem alma de mulher, e por isso merece todas as cortesias.

Ainda assim, a missão não era fácil. Entrar numa cozinha era coisa que eu não fazia. As panelas ficam muito “lá embaixo”. A pia também. Parece tudo pequeno.

Preparar um rango, então, era coisa que eu não sabia – ovo, miojo e mexido não entram no cômputo.

Pensei numa coisa prática, como uma feijoada, mas fui informado de que não caía bem com o vinho italiano. Também curti a idéia dum vatapá, mas me disseram que o dendê estava em falta na Piazza Navona, no que logo desisti.

Então optei pelo sempre estiloso estrogonofe, um garantido sucesso de formaturas e recepções chinfrins!

- Strogonoffi?!... –espantou-se Dani -, pero, “Xoao”, sembra una cosa rusa, si?..., - observou.

De fato, eu não tinha nenhuma comprovação das origens do prato, mas que poderia ser considerado típico, quanto a isso, não restavam dúvidas.

O resultado, até onde posso recordar, foi muito bom (não mais que isso). Melhor estava o mascarpone, que comemos de sobremesa, e ainda melhor, o vinho com que celebramos a data. Devo pontuar que estava bem melhor que o Almadén: Ave!

Conforme relatei anteriormente, barriga cheia, coração contente. E por entre risadas, goles e afagos, sentimos todos o desejo de realizar algo diferente. O ameno daquela madrugada invernal nos chamou à rua. Era tempo de conhecer a História. Tempo del Colosseo!

A sensação que tive, ao avistá-lo, foi a mesma que tive quando, ainda criança, avistei o Maracanã: senza parole...

O grupo se aproximou ainda mais, postando-se rente à cerca de metal que circundava e protegia o monumento. Olhei pelo vão, abobalhado, os contornos que minha vista alcançava. Quase não podia acreditar naquilo...

E fiquei completamente descrente quando olhei à volta, percebendo-me quase só, visto que mi amici, todos, já se encontravam do outro lado da cerca! Quanta ousadia! À Roma, chè da fare come i romani! Quindi... Lá estávamos, dentro do Coliseu!

Os italianos, que tanto falam e tanto gesticulam (mannagia!!!), calaram-se. Dispersaram-se. Buscaram a conexão. Entendi o recado.

Poderia eu, ter me sentado ao lado de minha amada, acolhendo-a em meus braços para, à luz dos mais lindos sentimentos juvenis, prometer-lhe um império de emoções. Mas não pude fazê-lo; seria apoteótico demais para que conseguíssemos levar adiante a vida. Há muito, entendi que o clímax é como a utopia que, conforme Eduardo Galeano, deve-se buscar, mas não atingir. Só assim caminhamos.

Então, caminhei.

Caminhei até o extremo. Até chegar bem próximo àquela exuberante cratera, situada num nível mais abaixo. Ungido não sei bem por que forças, prossegui.

Escalei muro abaixo, temendo, mais que tudo, o toque dum alarme. Ai, de mim!.. Se acordo César, sou dos leões!

Quando me vi ali, em meio às ruínas daquele colosso, perdi o contato com a realidade. E, contidamente, pus-me a caminhar por corredores e alamedas.

No céu, simetricamente postada bem acima de mim, urrava a lua, cheia, linda, prateada. Sua luz, incidindo no mármore milenar do qual é feito o gigante, tornara-se azul. Eu tocava aquelas paredes, aquelas curvas, com o mesmo temor que, quando criança, toquei as pernas de minha professora*. A mão, ainda no ar, tremia, mas deslizava suavemente por aquela macia superfície esculpida pela vida. Encostei o rosto. Senti o cheiro. Amei.

A cada passo, um “bum!”; era o coração. Era o medo. De tão forte, as batidas dele produziam fortes reverberações em meu corpo, que todo tremia.

Percorri cada recanto, tateei cada quina, cada esquina, vislumbrando gladiadores e leões em cada cela. Eles estavam lá. Pude sentir cada olhar, que me transmitia confiança e densidade.
Nunca senti tanto medo em minha vida, embora nunca me encontrasse tão seguro de mim mesmo.

Ave, Pai! Ave, Mãe!



*ler "Minha Primeira Paixão "

** photografie del colosseo: http://operachic.typepad.com/opera_chic/

quinta-feira, 3 de setembro de 2009

Brevíssima Análise de um Momento Recente

Photografie: João Sassi

"Respeitar esses rios e essas bacias é algo fundamental. Isso está sendo feito. Nós, hoje, estamos cuidando dos nossos mananciais, e isso significa desenvolvimento sustentável".

São palavras proferidas pela Ministra Dilma, na tarde de ontem, durante apresentação de obras de saneamento incluídas no PAC.

Estavam presentes 7 Governadores de Estado. Lula não foi por conta da agenda (que o atrasou). A imprensa toda notou que as palavras da Dilma eram, na verdade, palavras do Lula. A Ministra leu o discurso do Presidente ausente.

Está óbvio que o Governo sabe que a bandeira ambiental não lhe pertence. Está óbvio que a mídia os denunciará a cada palavra verde proferida, acusando-os de uma espécie de "plágio de lataforma eleitoral" .

.
Mas... Mas, o Brasil é um gigante que não lê e não se informa. Donde se conclui que somente a classe média dita informada estará por dentro desses acontecimentos. Dirão, "Esse discurso é da Marina!". Serão palavras ao vento, pois o Governo entende perfeitamente que ao POVO, o discurso lhe parecerá novo; e mais, legítimo.


Marina Silva não é conhecida dessa gente, uma gente que pouco ouviu, aprendeu ou pode escutar sobre os conceitos de desenvolvimento sustentável. Uma gente que tem rádio e TV - coisa que Marina não "tem" (e que o Governo "tem" de sobra).
.
O discurso da sustentabilidade desenvolvimentista, portanto, será feito com total desfaçatez por aqueles que, até ontem tinham o verde apenas como uma cor - desimportante, mas, ainda assim, uma cor.