Centro do poder político e (parcialmente) econômico, o Congresso Nacional atrai espécies dos mais diversos nichos ecológicos.
Via-de-regra é muito bicho pernicioso, pestilento e perigoso. E também muito bicho emplumado, ao estilo “sou amigo de Rei e primo do pavão doirado”.
Por isso, ando por ali com muito cuidado, sem muito olhar, resguardando minha intimidade e também o sorriso – que, aliás, não tem a menor importância quando não está em companhia do crachá funcional da casa. Sem ele, sou sempre digno de desconfianças rasteiras.
Mas se me meto num terno bem cortado, sou recebido como autoridade, com demonstrações de subserviência e humildade excessiva. Muitos por aqui dependem disso - desse carinho no ego dado por quem só o faz por obrigação – para poderem dormir direito, sem o menor peso moral pela culpa que suas ações causam à teia social. “Viu, querida? Aqui me chamam Doutor!” -, regozija-se uma destas espécies tacanhas, vistas aos pinhais pelas searas capitais.
É fácil reconhecer um animal desses, dada sua proliferação meteórica em ambientes fechados, escuros e acarpetados. É um tipo que traz a marca indelével, não na obviedade de sua aparência - sempre irretocável -, mas em seus trejeitos pessoais: na forma como opera o celular, no modo de tratar seus semelhantes, de torcerem o nariz e, principalmente, na sub-liminaridade de seus grunhidos. Por isso, já disse, ando sempre de butuca aberta.
Hoje, agorinha há pouco, deixei-me levar pelo tardar da hora enquanto passeava pelo túnel do tempo, no que passei quase desapercebido à presença de uma outra espécie, raramente vista: a do homem cordial.
Vinha eu, caminhando solitariamente pelos vazios corredores do Senado, dado que era já noite plena, quando, ao cumprimentar, de lampejo, esse ser, escutei: -“E a moça, vai bem?”
Era um antigo segurança do Senado. Confesso que não havia sequer olhado em seus olhos, no que dei meia-volta e fui ao seu encontro.
Surgiu então a figura sólida e ao mesmo tempo tenra de um senhor mulato, com seus 70 anos já há muito completados, enfiado num terno de gente importante, com o botom do Senado reluzindo em sua lapela. Provavelmente se mudou do subúrbio carioca para a nova capital assim que JK cortou a faixa inaugural. Ou antes.
- Como disse?
- E a moça, vai bem?
- Qual delas?-, rebati, fazendo graça.
- A moça com quem você está sempre por aí... Sua esposa, presumo.
Olhei à volta e não vi viv’alma. Só o espaço enooorme, vazio... E aquele senhor, calado, mimetizado a uma poltrona bege, quase escondido por detrás de uma bancada. E senti como se estivéssemos num outro lugar, a ponto de me debruçar amistosamente e explicar-lhe:
- Ah, não, não somos casados... Somos namorados. Acabei de estar com ela. Vai muito bem, obrigado.
- Você me desculpe a intromissão...
- Você tem a liberdade...
- Mas é que vocês têm uma sintonia bem amadurecida; uma coisa que faz gosto da gente ver.
- Mesmo?
- Sim. Já vi vocês várias vezes na lanchonete do Senado: sempre felizes, bem humorados!...
- De fato, sorrimos muito quando estamos juntos... Mas é coisa de casal.
- Quem dera fosse!... Mas não é só isso; tem mais coisa aí... É coisa que se vê pouco nos casais de hoje.
- Não sei se fico feliz ou triste por isso...
- Fique feliz! A moça é jovem, e o senhor já é maduro; deveriam se casar logo.
- Bem, ela é mais velha, mas tem alma juvenil.
- É muito bonita.
- Obrigado.
- Se o senhor me permite...
- Claro!
- Se me permite, devo dizer que o mais importante é você falar para ela, num ou outro momento: “eu te amo”. – é fundamental. Acorda cedo e sai pro trabalho, mas antes, diz “eu te amo”.
Olhei para suas olheiras pesadas, de quem há muito agüenta as dificuldades e a mesmice do viver. Perguntei seu nome: “Anastácio”. Apresentei-me e o agradeci com sinceridade pelas palavras de afeto.
Voltei ao gabinete.
Passava das oito da noite e já não havia mais ninguém por lá. As mesmas portas pesadas de madeira. As mesmas salas, as mesmas mesas, computadores e a mesma sensação de que sempre há muito que se fazer.
Comecei a apagar as luzes e a conferir se estava tudo “em ordem” para por fim à jornada.
“Por aqui, as coisas nunca mudam”, pensei, já trancando a porta, "é sempre a mesma coisa!".
Fora do gabinete, porém, olhei para aquele vazio monumental e senti uma diferença no meu estado de espírito... Algo havia mudado.